Daniel Campos

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23/09/2014 - Uma espera, uma janela

Já chega a reclamar de dor nas costas de ficar arqueada na janela esperando por seu amor. Até cochila sem a menor porção de medo de cair do segundo andar e quebrar os ossos que já estão em processo de esfarelamento. Embora conheça seu cheiro, seu andar, sua silhueta e até sua sombra, ela dá-se ao prazer de se confundir com todos os que surgem nas pontas da rua só para alimentar uma esperança despropositada em torno da chegada de seu bem. No fundo, sabe que ele não vai aparecer, tampouco passar sob sua janela e admirar o tempo em sua face. Ainda podia sacar uma flauta e tocar aquela canção cuja agulha da vitrola já riscou o vinil. Podia ainda esticar o braço pelas grades enferrujadas pela chuva e pela urina dos vira-latas e apanhar uma rosa, de um jardim farto, e atirar aquela mistura de pétalas, cores e perfumes em sua direção. Podia tanta coisa, mas não pode nada além dos devaneios daquela senhora que jamais deixou de ser mulher. As pernas podiam estar um pouco enferrujadas, mas os sonhos estavam tinindo de inteiros. Ela até deixava a comida queimar no fogo porque não podia deixar de espiar a janela. Tomando banho, fechava os olhos e imaginava a rua. E só ia para cama exausta de sono, vencida pelo cansaço, com a certeza de que se ele surgisse por aquelas alamedas ela seria desperta por algum anjo ou pernilongo apaixonado. Os bordados e alinhavos eram feitos na janela. Não gostava de novela, filme, programa de auditório, mas da programação da sua janela. Aquela televisão viva de mais de cem polegadas lhe trazia a razão de sua vida numa espera permanente pela próxima cena. E como tudo o que vinha de uma televisão, ela sabia que sua janela lhe trazia doses de ilusão, fantasia e imaginação. Mantinha-se fiel aquele quadro mesmo sabendo que seu bem amado jamais apareceria por ali; Não porque ele tivesse morrido, mas talvez porque ele nunca tivesse existido para além daquela janela.


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