Uma bossa ainda mais nova
Era demais, mas não era tarde quando um deus, louco e pagão, pausou um olhar (como se buscasse um outro céu) e confessou seus desejos ao piano. As mãos partiram em busca de uma fórmula ainda não inventada. As claves de sol se envolveram e das entranhas de uma sétima menor nasceu, sem gritos ou explosões, uma canção impossível. Ela, a canção, escapuliu por entre as teclas pretas e brancas e se fez mulher.
Ela passou e, diante da euforia em suas artérias, ele se atirou daquela cobertura que arranhava estrelas mais abusadas.
Ela passou e, diante da tristeza em seus olhos, ele se atirou daquela cobertura que muitos chamavam de céu.
Sem culpas ou remorsos, ela, não menos louca e pagã, desceu caminhando sobre os braços de um vento. Conforme andava, o corte de seus saltos partia o vento em milhões de brisas mensageiras. Sem roteiro prévio, ela ganhou às cidades, às ruas, às retinas. Enquanto aquele deus se estatelava no chão, o mundo regia o caos e ela passava...
Ela passava e desprezava as diretrizes do tempo. Amanhã, ontem, futuro, relógios e ampulhetas deixavam de existir em seu andar. Passava e os girassóis giravam, giravam, giravam até se esquecerem do sol. Passava e seduzia os oceanos só para lhes roubar as ondas. Passava em uma dimensão feita para e somente para si. Passava pelas esquinas imaginárias e seu andar entortava retas e cruzava paralelas. Passava e a menor distância entre duas retas deixava de ser um ponto para ser um passo. Passava, quadro a quadro, num filme onde o romance era cenário. Passava calada com as esperas, feito parasitas, tatuadas em seu corpo. Passava e, a exemplo daquele deus, muitos enlouqueceram e se suicidaram em seus movimentos. Passava e os que não suportavam tamanha dose de magia se internavam nos hospitais, num quadro clínico tão irreversível quanto desejado.
Passava e os retratistas a seguiam num rastro de flashes. Passava e estilhaçava os cristais dos cálices, das vitrines, dos porta-retratos. Passava com a graça das bailarinas e das equilibristas que não trocam seus passos por moedas. Passava e lhe pediam bis. Passava em busca de algum palácio, de algum oráculo, de algum mistério a mais. Passava e as ruas gemiam de prazer. Passava e milhões de átomos se enforcavam em seus cabelos na alegria descontrolada dos apaixonados.
Passava e causava amnésia nos que a flertavam. Passava como se deslizasse, flutuasse, voasse... amasse mais do se podia amar. Passava e sua beleza procriava a cada passo. Passava e deixava um leque de sabores. Passava e escancarava todas as cortinas da imaginação.
Passava e o maior dos ateus, aquele que nunca acreditou em nada, curvou-se quando a viu passar. Passava no balanço das pedras de gelo imersas em um copo de uísque. Passava em uma linha melódica: o primeiro passo era um passo e o segundo, um passo sustenido. Passava e seu andar escapulia das mãos como um verbo abstrato. Passava e causava delírios nos olhos mais desertos. Passava divinamente, como se o espírito daquele deus louco e pagão ainda não houvesse desencarnado de seus passos.
Passava e cada passo trazia uma despedida e um encontro. Passava como se os mistérios caíssem, um a um, em seu colo fresco. Passava e todas as respostas estavam ali, em suas sombras, prontas para serem ouvidas. Passava e recomeçava o que ninguém havia sequer começado. Passava como se desfilasse no cordão mais solitário que já existiu: o cordão umbilical.
Passava e os restos de seus movimentos agonizavam em outros corpos. Passava e os ouvidos mais privilegiados podiam escutar os cochichos entre seu vestido e sua pele. Passava e deixava uma conta de sentidos escapar pelos seus poros. Passava e permitia a promessa de um andar sem fim. Passava e diante de suas costas, assobiavam-na. Passava e a chuva tentava arrancar um pouco do gosto do seu andar só para escondê-lo no fundo dos mares como tesouro proibido.
Passava como se fosse fábula. Passava feito história que não se conta. Passava e lembranças marcavam o chão. Passava invocando sentimentos adormecidos e, até mesmo, os não conhecidos. Passava como sonho passageiro, daqueles que surgem fora de hora, sem o mínimo nexo. Passava e os pianos, solitários ou não, tocavam-na. Passava e cada poeta lhe oferecia uma letra. Passava em passos de contorcionista, dobrando-se entre tonturas e alucinações.
Passava como num transe. Passava entre o sim e o não. Passava como se afirmasse a falta de limites. Passava como se negasse o maior dos enganos. Passava como se fosse uma mentira. Passava como se fosse a síntese. Passava e tantos a dançavam. Passava e confundia os confusos. Passava e deixava dúvidas sobre a possibilidade e a impossibilidade.
Passava e cada passo traçava um novo caminho. Passava e cada passo trazia um motivo diferente. Passava e cada passo mexia com um destino. Passava e cada passo era o início de uma traição.
Passava e ninguém a classificava como samba, tango, valsa, bolero, choro... Passava como uma bossa ainda mais nova. Passava e ninguém conseguia provar, ao certo, de onde surgira àquela canção. Passava e ninguém percebia a falta daquele deus pianista. Passava e ninguém desconfiava que, naquela cobertura, o piano continuava aberto e em suas costas debruçava-se uma partitura. Uma partitura em branco.
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