Um conto de fada sobre fidelidade
"Prometo ser fiel, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando e respeitando"... esta talvez seja a declaração de fidelidade mais conhecida e mais propagada ao longo dos tempos, embora nem sempre cumprida. Nos dicionários, a palavra fidelidade é definida como constância, coerência, honestidade, lealdade. Em resumo, a fidelidade é um vínculo moral decorrente de nossas convicções. Somos fiéis aquilo que, ao longo do tempo, aprendemos a amar e a respeitar. Nos últimos dias, o tema fidelidade ganhou a berlinda de bocas fiéis e infiéis, de línguas crentes e pagãs. O alvo foi o casamento dos políticos com seus partidos, isto é, a chamada fidelidade partidária.
O Supremo Tribunal Federal, o mais conservador de nossos poderes, quis por fim a traição no âmbito partidário. O nome dos infiéis, como numa inquisição em nome da moralidade e dos bons costumes, foi exposto em capas de jornais e no horário nobre da televisão. E lá estavam eles, os políticos que mudaram de legenda, apreensivos e arrependidos como marias madalenas bíblicas. Diante de tamanho embate, só faltou uma multidão plagiar Chico Buarque e ir às ruas cantando um novo hit: "joga pedra nos infiéis, joga pedra nos infiéis, eles são feitos pra apanhar, eles são bom de cuspir, eles dão para qualquer um, malditos infiéis"... Mas ainda não foi desta vez que aconteceu o tão esperado levante nacional... Por mais uma vez o brasileiro mostrou ser fiel ao "deixa isso para lá"...
Perder ou não perder o mandato, eis a questão. O mandato é dos políticos porque ganharam a eleição ou o mandato é dos partidos porque possibilitaram aos políticos a vitória nas eleições? Lados diferentes, análises, olhares e respostas diferentes. De um lado, os partidos da oposição, prejudicados pela retirada de parlamentares. De outro, os partidos da situação, alimentados pelos que querem tirar uma casquinha do governo. A fidelidade política tem preço. E um preço alto para as nossas utopias e também para os nossos bolsos. Vínculos ideológicos e pessoais são comprados em troca da aprovação ou não de projetos que atendem exclusivamente aos interesses de poucos. E nós não somos poucos.
Mas essa relação de bigamia partidária não é recente, ao contrário, chega a ser cultural. Fazendo uso dessa relação de conveniência explícita, o país para se democratizar teve de apelar para a infidelidade. Se não fosse pelos infiéis, Paulo Maluf haveria ganhado as eleições presidenciais no lugar de Tancredo Neves. Não é válido julgar agora o que Maluf - o fazedor- poderia ter feito na presidência, mas com Tancredo veio um clamor democrático. Qual foi o preço dessa infidelidade - a morte de Tancredo ou o governo Sarney? Responda como quiser, caro leitor, o que importa é que desde muito tempo a fidelidade entre políticos e partidos é nada mais nada menos do que política. Na época, o próprio TSE foi quem garantiu esse vale-tudo eleitoral. Ser fiel ou ser infiel é apenas a continuação dessa arte que ora é trágica, ora é drama, ora é comédia...
Particularmente, o episódio atual beirou à comédia. Onze ministros, onze togas, onze "deuses acima do bem e do mal" julgando o amor e a traição de políticos que deitaram na cama partidária alheia. E, mesmo com toda pompa, o julgamento deixou a desejar. Ao contrário da fidelidade partidária deveria ter sido colocado em xeque a fidelidade eleitorária. Devíamos ter extrapolado os limites da fidelidade do político para com o partido e discutido o que realmente interessa: a fidelidade do político para com o eleitor. Precisamos de uma reforma política-eleitoral, mas de uma reforma que cale fundo os males oportunistas, lobistas, clientelistas que insistem em movimentar a agenda do país.
Deixar o debate na superfície da infidelidade partidária leva-nos a uma reconstrução da Idade Média, onde havia uma grande fidelidade entre o rei e os senhores feudais (coronéis) e uma grande infidelidade na relação desses senhores com seus vassalos (povo). Fantasias à parte, não é impedindo a troca de partido que vai se extinguir a infidelidade na política brasileira. Além dos partidos, por si só, não serem templos de fidelidade, essa virtude não se adquire do dia para a noite, ao contrário, ela move o homem desde a sua origem, estando ligada diretamente a sua consciência. Da mesma forma, a infidelidade também move o homem. É um vício, uma droga, um prazer. Uma deficiência moral difícil de curar. Talvez seja preciso chamar Cabral e suas caravelas e começar tudo de novo...
Perdoem-me nobres ministros do Supremo, independentemente do mérito da intenção, trocar um infiel por outro não valerá de nada para a construção de um país melhor. Os suplentes seriam fiéis a quem? De que adianta querer fortalecer os partidos se o maior partido que governa esse Brasil há tantos anos é o partido dos infiéis, que trai o povo tendo relações ardentes com a exclusão social. Infelizmente, desde que os históricos rivais MDB e Arena se aproximaram a ponto de se misturar durante a reabertura política, na década de 80, os partidos são redutos de contradições, oportunismo e interesses de ocasião. Lembro-me de uma palestra quando ainda estava nos bancos da faculdade. Um aluno saudou o deputado José Genoino (PT/SP) como oposição. Sem pestanejar, Genoino bradou que acima de ser oposição ou situação, ele era de esquerda. Bons tempos, boas ilusões.
O povo não é nem governo nem oposição, o povo é o povo é o povo é o povo. Ò onze ministros, desçam desse "altar" e comecem a andar pelo país em uma campanha de educação política. Sujem seus pés na lama, na poeira, na terra batida desses sertões de tantos brasis educando, conscientizando, plantando as sementes de uma nova geração de eleitores que seja capaz de gerar políticos e partidos fiéis. Não sei se é possível, desse solo de tanta exploração e descaso com o povo, nascer uma grande leva de políticos romeu e julieta, capazes de se envenenar em nome da fidelidade com seus eleitores, mas se a educação político-eleitoral estiver presente desde o ensino fundamental será mais fácil colhermos uma safra melhor de representantes. Segundo os sociólogos, são necessários, pelo menos, 40 anos para outra geração vir à tona, isto é, para que se estabeleça ou se mude uma cultura. Então, mãos à obra para transformar a fidelidade de conto de fada à realidade.
Será que os nobres ministros estão dispostos a deixar a teoria de séculos e séculos de lado e puxar essa semeadura ou será que vamos ter de apelar para a fé? Será que fidelidade para nós, povo pobre e pecador, será sempre uma questão de fé? Será que só nos resta fazer uma corrente de oração para São Miguel, que é o protetor dos bons relacionamentos e da fidelidade? Será que vamos ter que colocar dúzias e dúzias de cravos-rosa e quartzos-rosa nos gabinetes dos nossos políticos. Afinal, tanto a flor quanto a pedra, em questão, estimulam a fidelidade. Por mais que pareça uma fábula, entre o real e o místico, precisamos trilhar um caminho para que os políticos sejam fiéis na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando e respeitando por todos os dias de seu mandato o eleitor...
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