Daniel Campos

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22/05/2008 - Tempos de Corpus Chirsti

"E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da Nova Aliança no meu sangue derramado em favor de vós." (Lucas 22:19-20)

Tudo começou com um sonho. Há 900 anos, onde hoje fica a Bélgica, uma freira sonhou com uma lua completamente negra. Estávamos na Idade Média, na época das trevas. Reza a história, que a freira procurou o padre da cidade e contou-lhe a mensagem que havia por detrás do sonho: era preciso celebrar o corpo de Cristo. O padre passou a comandar um cortejo de ação de graças pelas ruas do lugar para agradar aos céus.

Com o passar do tempo, essa iniciativa se espalhou pela Europa e o Papa a decretou universal. Seria uma celebração à Eucaristia, ao Deus Vivo, ao Corpo de Cristo. Ao contrário do que acontece na Sexta-Feira Santa, a procissão da primeira quinta-feira depois de Pentecostes seria um evento alegre, em louvor a um Deus ressuscitado presente no pão e no vinho. Querendo agradar ao Altíssimo, os fiéis da Espanha e de Portugal começaram a enfeitar as ruas com tapetes coloridos. A partir daí, fica fácil descobrir o que aconteceu, afinal, em 1500 os portugueses chegaram ao Brasil, com seus costumes e tradições.

Lembro que, quando criança, meu pai me levava de carro para ver os tapetes por volta das 15h (a procissão saia às 17h). Ele estacionava o seu passat acinzentado próximo das ruas enfeitadas (as ruas do centro da cidade eram fechadas para os carros neste dia) e eu enchia as minhas retinas daquele corredor colorido feito de serragem, grãos e pó de café. Eram desenhos representando a hóstia sagrada, o pão, o trigo, o cálice, a uva, Cristo, o Espírito Santo. E eu, mais meus pais, admirávamos os tapetes e depois íamos para a casa de vó Ofélia, que nos contava que no seu tempo os tapetes eram feitos de flores e folhas. Principalmente, folhas de mangueira. Minha imaginação corria longe.

O tapete visto por vó Ofélia era o mesmo que se derramava pelo chão no início dessa festa em Portugal. Essa tradição praticamente desapareceu frente à criatividade dos brasileiros, que preferiam confeccionar aquelas passadeiras com produtos mais originais. Na época do barroco, nas Minas Gerais, os nossos tapetes ganharam em pompa, com detalhes e cor. Voltando as minhas lembranças, eu fui crescendo e meu pai, que já não via mais o mesmo encantamento nessas coisas, deixou de me levar para ver aquelas obras espalhadas pelo chão. Passei então a percorrer os tapetes em procissão ao lado de minha outra avó, Adélia. Assistíamos à missa, comungávamos a Eucaristia, e depois saiamos pelas ladeiras da pequena Mogi-Mirim.

O tapete começava na Igreja de São Benedito e, com ele, um longo percurso a ser trilhado pela Hóstia consagrada conduzida em um ostensório. A celebração reunia todos os padres da cidade em uma só procissão. Padre Gilberto com sua voz pausada. Padre Paiva com sua batina preta. Frei Afonso com seu discurso revolucionário. Frei Alcides com seu jeito manso. Frei Antônio com sua postura carismática. E eram tantos outros padres, seminaristas, freiras e cidadãos comuns, como eu e minha vó Adélia, que íamos de braços dados. Era bonito de se ver e ouvir. E era uma multidão em fila a andar e espiar os tapetes. E era preciso andar ligeiro, porque os padres que fechavam à procissão caminhavam misturando e desmanchando os desenhos com seus pés.

O dia ia caindo e nós caminhávamos até a Matriz de São José, onde, a sua volta, podíamos observar ilustrações ainda maiores e mais vistosas. Pudera, era o desfecho da procissão, a benção final. Por muitos anos eu fiz este trajeto. Hoje, distante dos tapetes, fica a saudade. Continuo católico praticante, continuo em constante comunhão, continuo encontrando o Deus Vivo na Eucaristia, mas estou longe dos tapetes coloridos. Mas se fecho os olhos, escuto aqueles cantos, aquelas orações e aquela gente passando em procissão ao lado dos tapetes. Escuto a voz de dona Adélia rezando. Se eu mergulhar mais fundo, ouço vó Ofélia falando sobre os tapetes de folhas de mangueira. E se eu mergulhar mais fundo ainda, sou capaz de ouvir a voz de meu pai elogiando aquelas esculturas de serragem. E tempo que não volta...


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