Daniel Campos

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Suplicyniando

Os passos longos percorrem corredores e salões vazios. Não se sabe se noite ou se dia. A luz ali dentro daquele castelo sem rei é sempre a mesma. Os passos passam à procura de alguém. Os passos passam à procura de tantos. Os passos passam trazendo outros passos imaginários na solidão daquele chão azul. Como se o mundo rodopiasse e ficasse de ponta-cabeça, ali, o céu era de concreto e o chão era de um azul quase mar. E entre ondas e oceanos de gente, de promessas e de sonhos... Os passos passam por tapetes azuis.

Uma tribuna. Os óculos finos, os cabelos entre o cinza e o branco. O paletó e a gravata numa mesma composição. Com toda a calma, os lábios finos constroem um discurso. Um discurso conhecido e já dito, de tantas outras formas, por aquela mesma boca de um sotaque italiano e caipira. Mesmo já dito e redito e bendito, aquele discurso não envelheceu.

No decorrer daquelas palavras surgem os pés dos passos que trouxera consigo. São pés que pisam num solo sem sementes. São pés negros, rosados, mulatos. São pés de todas as cores e alguns até sem cor. São pés descalços. São pés rachados. São pés doentes. São pés de tantas histórias e alguns ainda nem conheceram o gosto do chão. São pés que trazem outros pés e até uma procissão. São pés que não têm idade. São pés com fome. São pés que têm seus terços seus rezas seus credos. São pés sujos. São pés cheios de dor. São pés cheios de sonhos. São pés de tantos espinhos. São pés de tanta flor. São pés calados. São pés excluídos. São pés aprisionados. São pés acorrentados. São pés de unhas cruas e esmaltadas. São pés que esperam por uma espécie de sorte. São pés, que apesar de tudo, caminham. São pés que lutam uma guerra que não aparece nos jornais. São pés feitos de escolhas, encruzilhadas, esquinas. São pés de tantas despedidas. São pés de tantas recordações. São pés mal vestidos. São pés por tantas vezes abandonados. São pés vitimados, acuados, reprimidos. São pés vitimados pela guerra do cotidiano. São pés do salário mínimo. São pés sem salário algum. São pés desempregados. São pés chorados. São pés iletrados. São pés abandonados. São pés calejados. São pés dependentes. São pés sem oportunidades. São pés com tantos desejos, com tantas vontades, com tantas ilusões. São pés envergonhados. São pés que tentam encontrar o caminho do Alasca. São pés à beira do precipício social. São pés que ajudaram a construir um Brasil e que agora não têm direito à riqueza da nação. São pés que buscam algo mais do que caridade, esmola e compaixão. São pés que fogem da humilhação. São pés que acreditam que, apesar de tudo, a vida, um dia, irá valer a pena. São pés sem poder. São pés sem um futuro acessível e quiçá possível. São pés sem condições de sustento. São pés sem casa. São pés sem necessidades básicas. São pés à procura de uma renda mínima.

Entre tantos passos de pés de um mesmo país, acabam-se as palavras. Os olhos úmidos deixam o alto da tribuna e se transformam em passos. Os pés de um semeador deixam de lado o título de Vossa Excelência e se juntam àquela imensa marcha. Os pés deixam aqueles tapetes azuis, rumo a outros tapetes, a outras cores, a outros sabores, alimentando-se de um caminho, íngreme e torto, mas onde o sonho ainda pulsa. Pulsa a esperança de uma renda cidadã para todos os pés que caminham numa falta de cidadania.

Observação do autor: Tributo a Eduardo Suplicy.


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