Daniel Campos

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14/07/2010 - Sopros do tempo

Muitos de meus textos nasceram ao som de um trompete, de um saxofone, de um clarinete. Foi como se a inspiração se manifestasse por meio de sopros. Lembro de passar longas horas em meu quarto ouvindo parte da coleção de discos de meu pai. Aqueles álbuns dedicados à música brasileira instrumental sempre me provocaram. Muito do que escrevi, naquelas ocasiões, foi no sentido de preencher aquela falta de voz. Saindo do meu quarto e ganhando o mundo, o vento me soprava canções de sax, a chuva caia dedilhada no braço de um violão e a estrada se alongava em feitio de um solo de piston.

Infelizmente, a vida foi crescendo e me tirando as flautas e os pianos de Jobim. A agenda, os afazeres, o barulho da cidade grande foram sufocando sopros e cordas. Pouco a pouco, fui me perdendo dos violões de Baden Powel, Raphael Rabello e Paulinho Nogueira, do sax de ouro de Ivanildo, do piston dentro da noite de Araken Peixoto, da viola pantaneira de Almir Sater... Nem mesmo a marcação dos surdos da Estação Mangueira e as cuícas da Velha Guarda da Portela conseguiram resistir. E com isso eu deixei de contar, na maioria das vezes, com a música instrumental como pano de fundo das minhas criações.

Boa parte do que escrevo hoje, faço ouvindo os sons do interior. Do interior de mim. Essa música intimista é uma mistura do que ouvi ao longo da vida, dos sons e silêncios que acumulei pela estrada. Não me lembro dos nomes daqueles discos, dos títulos daquelas músicas, mas as canções continuam vivas em algum lugar da minha existência. Tão vivas quanto Paulo Moura, o senhor trompetista e saxofonista que partiu anteontem para um mundo não muito distante. Tanto que talvez esse vento leste que corta os céus nesse momento seja sua mais nova composição.


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