06/06/2008 - Sonhos adormecidos
A caminho do trabalho, uma vontade incontrolável de soltar pipa. Estava no meio de uma cidade grande, de terno e gravata, com pasta na mão, a poucos minutos de uma reunião com investidores chineses. Do seu lado direito, com uma lata de alumínio na mão, daquelas de leite ninho, um menino de rua empinava pipa, papagaio, maranhão por entre os fios dos postes e as copas das árvores. Mais do que nunca, ele se sentia tentado. Não sabe de onde veio a inspiração, mas era algo forte e urgente. O desejo era intenso a ponto de desconcertá-lo. E olha que eram poucas as coisas que o tiravam do sério.
Não sabia o que fazer. Não podia estar com aquela vontade. Parecia mulher grávida. Sua boca salivava de desejo. Seu corpo coçava. Seus olhos brilhavam. Há 20 anos, pelo menos, não empinava pipa. Por que esse desejo tinha de vir logo agora? Tentou convencer seu subconsciente a deixar essa loucura para o final de semana, quando ele fosse ao parque. Mas o seu "eu mais profundo" não queria saber de conversa. A resistência, imposta por aquele senhor distinto, caia pedaço a pedaço.
Acelerou o passo, estava quase entrando no edifício sede da empresa em que trabalhava, mas não agüentou. Deu meia volta e convenceu o menino, por alguns reais, a emprestar um pouco sua pipa. Seria só por alguns segundos. Coisa pouca. Bobagem para acalmar o nervosismo. É isso. Ele devia estar nervoso por conta da reunião que envolvia muitos investimentos e ganhos para a empresa que dedicara sua vida. O resultado dessa conversa poderia significar uma promoção à vice-presidência. Estaria a poucos passos da realização, mas aquela maldita pipa o atrapalhava.
O que eram segundos passou a ser minutos. Longos minutos. Olhava para o céu feito criança acompanhando o malabarismo daquele losango colorido, com rabiola de argola e franjas laterais. As varetas bem dispostas, arqueando como um pássaro voraz, a faziam voar alto. Aquele menino era danado, sabia fazer uma boa pipa. Mas e se alguém o visse ali? Como iria explicar? Ah! Isso já não importava mais. O paletó foi ao chão e o menino foi embora com uma boa quantia em dinheiro. O homem havia comprado a pipa. E os chineses? Que esperassem. Aliás, que esperassem aquele menino crescer novamente.
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