Daniel Campos

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Sexta-feira santa

Pela virgem dolorosa
Pela mãe tão piedosa
Perdoai-nos meu senhor
Perdoai-nos meu senhor

Esses versos cortam. Cortam feito vento. Cortam feito um pressentimento que, de tão bruto, não sabe se bom ou se ruim. Esses versos latejam como ferida aberta, que o tempo, feito um mertiolato barato só faz arder. Versos que rangem dentro de mim, como aquela porteira que já não abro mais. Versos que me arrastam e que me levam. Versos que, nesses movimentos, trazem um mar revolto onde se escondem os tesouros de um pirata de perna de pau. Versos que me rasgam assim como eu rasgava as folhas do calendário do Sagrado Coração de Jesus da casa da minha avó. Versos de uma noite escura. Versos de um vento frio vindo não sei de onde. Vento arteiro que fazia estripulias para apagar a chama das velas em procissão. Ah! As velas. Aquelas velas finas e cumpridas que já não saem mais por ai. Calmamente, preparava-se o copo, furando-o com a chama de um palito de fósforo para que a cera quente não queimasse o dorso de nossas mãos. E a noite era só da luz das velas. A lua vestia a mortalha da escuridão e as estrelas menos respeitosas, brilhavam, mas um brilho minguado, quase fosco. Como castigo, elas iam morrendo, queimando e ardendo em seu próprio fogo. O dia era de silêncio. Mas os versos rasgavam o silêncio em passos geométricos. Por meio das rezas e dos cânticos de duas filas indianas, sobre os ombros, vinha o andor de nosso senhor morto.

Silêncio.

Lembro ainda dos braços finos, das pernas esquálidas, das mãos feridas de um Cristo ensangüentado. Lembro de tua dor coroada de espinhos. O Cristo ali, deitado, caído, abrindo um vazio na gente com a virulência de uma bala perdida. E os olhos experimentavam velar nossa própria esperança. O clima baixo, as falas baixas, os rostos baixos eram dignos de velório. Do outro lado do altar, uma Nossa Senhora, vestida com um manto roxo, chorava em silêncio.

Silêncio.

A igreja sem flor, sem toalhas, sem vela no altar, à meia luz e abarrotada de gente. Filas e filas para beijar as imagens. E se a imagem já é fria, na sexta-feira santa tinha um frio mortiço. Era como se aquelas imagens estivessem mortas de fato. E saindo da igreja, falava-se a meio tom, os rádios e as televisões sussurravam, os bares fechavam suas portas, os carros paravam e apagavam seus faróis, pessoas abaixavam suas cabeças e ascendiam velas nas janelas escuras.

Tudo tinha um quê de dor, um quê de silêncio, um quê de angustia. E esses sentimentos se enfileiravam e formavam uma procissão que escorria feito lágrima corrente pelo rosto da cidade. O tempo mudava. O tempo metereológico ganhava mais nuvens, um vento frio e um sereno que engrossava, mas não chegava a ser chuva... E havia neblina como naqueles filmes de tempos antigos e lugares ermos que passam na sessão das dez... O tempo cronológico demorava a passar e pesava sobre a gente. As voltas dos relógios eram mais longas. O tempo psicológico nos invadia de uma tristeza sem explicação. E a procissão tomava as ruas da cidade em dezenas, centenas, milhares de velas.

Por entre essas velas, o vento carregava rezas desfiadas. Ave-marias se encontravam com pais-nosso que se encontravam com os versos de coração santo que se encontravam com outras ave-marias que, por sua vez, encontravam-se com a quietude daqueles que preferiam rezar sem silêncio, caminhar em silêncio, chorar em silêncio. Depois de percorrer ruas, jardins, praças, janelas, travessas, casas, lagos, escolas, as velas continuavam acesas para a benção final. Depois se media a vela mais curta para saber quem tinha mais pecado e ia-se para casa com vários silêncios gritando dentro de cada um. Jantava-se em silêncio e dormia-se no silêncio da dor e da esperança de ver o encontro de Cristo ressuscitado com a Virgem Maria na madrugada seguinte.

Hoje tudo é diferente. O silêncio não tem a mesma intensidade. As ruas não ganham mais velas. As velas não queimam sua chama e uma chama pagã invade as estrelas, as luas, os bares e as casas. Os rádios tocam a toda altura, as televisões trazem a programação normal e as pessoas andam num converse, numa euforia, numa alegria despudorada, como se em clima de natal. O estranho é que o natal de hoje parece mais triste do que sexta-feira santa. Uma inversão de papéis. Desculpe-me a blasfêmia, mas na sexta-feira santa de agora só falta um papai-noel sair gritando jingle bell pelas ruas sem procissão. Talvez por isso, as assombrações de antigamente voltaram a habitar as ruas. Pobres assombrações. Assim como os mistérios da sexta-feira santa, ninguém as crê ninguém as teme ninguém as respeita.

Hoje é sexta-feira santa e come-se carne vermelha e o pecado sai pelas ruas sem medo algum. Quem além de mim ainda ousa fechar o corpo na sexta-feira com um punhado de ervas? Quem além de mim ainda queima uma vela e contempla as 15 estações de uma via sacra em suas chamas? Quem além de mim acredita nisso tudo? A igreja vazia, sem via sacra, sem procissão, sem as imagens de nosso senhor morto e nossa senhora. A hora santa se transforma em hora da saudade. Saudade do tempo em que a sexta-feira santa existia para além de um nome oficial do calendário.

Pela virgem dolorosa
Nossa mãe tão piedosa
Perdoais meu senhor
Perdoai-nos meu senhor


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