Serenata
As estrelas quase não teriam mais o que conversar. As janelas, fechadas, guardariam segredo. A rua, vazia, aos poucos sumiria em si mesma. Nem as sombras do céu brincariam de roda no meio da rua. Os cachorros dormiriam e nenhum felino se equilibraria sobre os muros. As árvores de tão quietas pareceriam enfeites. De fato, ninguém ousaria esperar mais nada daquela noite alta. Seria uma noite como tantas outras noites. Uma noite de sono. Uma noite qualquer. Mas quando menos se esperasse... da rua surgiria uma nota. E depois outra. E mais outra.
O som de um saxofone invadiria a noite, ou melhor, a madrugada. Um homem vestido de negro, gravata borboleta e saxofone se encarregaria de mudar os rumos daquela noite como se fosse mago ou coisa parecida. Aos poucos, os sonhos romperiam o casulo. Aos poucos, os sonhos ganhariam o mundo. Aos poucos, os sonhos iriam se encontrar com a mulher amada. Cortinas, janelas, portas. Os sonhos passariam por elas, sem se importar com cadeados, trancas, forros. Então, os sonhos, suavemente, começariam a atingi-la.
Ela acordaria de forma branda e sem saber as horas, afogaria seus olhos no travesseiro. Mas a música seria persistente. Tão persistente que enfrentaria o seu sono. E a música, mesmo sem saber falar, diria o nome dela. Diria aquele nome, desconhecido até mesmo por mim, repetidas vezes. A música a chamaria. Então, ela deixaria a cama ainda com passos de sono. Mas, em breve, o desejo de saber o que acontecia lá fora seria maior do que qualquer bocejo. Escorregaria da cama e, ainda no escuro, encostaria o rosto na cortina. Lá, ficaria a imaginar hipóteses com os ouvidos colados à janela. Logo, correria até a porta da sala, ainda de pijama e esquecida dos chinelos.
Antes de abrir a porta, meditaria por alguns minutos. Perguntaria se de fato aquilo estava a acontecer. Antes das respostas, espreguiçaria com todo gosto. Os cães latiriam. Os vizinhos sairiam à rua. As estrelas se fariam mais baixas. Na calçada, aquele homem de negro acariciaria o saxofone. E Pixingüinha caminharia pela sua calçada. E ela? Bem, ela ficaria entre o sorriso e o choro. Ora um, ora outro. Às vezes, os dois.
As valsas iriam rodopiar pelas luzes fracas da sua rua. Os ponteiros do relógio depostos num ângulo reto. Três horas da manhã. Aquele saxofone falando de amor e se não fosse ao meu pedido, seria causa de profundo ciúme. Aquelas músicas a convidariam para tantas coisas. Entre elas, pediriam para você calçar as sapatilhas. Mais uma vez, as sapatilhas. Ela... Ora dançaria, ora ficaria quietinha ora pediria um abraço forte para a sua mãe.
O tempo pararia. Pararia diante de tamanha magia. Pararia para saber o que ela sentia. Junto com a primeira nota de saxofone, o silêncio cairia sobre a rua de tal forma que expulsaria o vento, a chuva, os grilos, os carros e qualquer outro som que pudesse atrapalhar. Naquela noite alta, só existiria o saxofone, mensageiro das coisas que eu queria lhe falar. Seriam poucos minutos. No entanto, minutos de um outro tempo. E ao fim do mais longo suspiro da mulher amada, aquela música, aquele homem, aquela cena, desapareceriam na noite.
A música ainda resistiria por mais algumas notas nos ouvidos daquela mulher. Mas só ela poderia escutar. E naquela noite, ela não conseguiria mais dormir. Não, ela não conseguiria mais dormir. Estaria sob efeito daquele saxofone. Nada mais. Seria assim ou, ao menos, eu queria que fosse assim.
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