Sem tempo
Um alambique de pinga abandonado queria dizer-me que tinha ali, entre seus tonéis, litros de passado... Os tijolos à vista estavam escuros pela baba dos musgos. A chaminé, ainda alta, me aguçava uma vontade de escalá-la, de interrogá-la, de encher os pulmões com o teu resto de fumaça. Ela devia guardar tantas coisas em seu vazio escuro. Tenho certeza de que nenhum papai-noel jamais descera por ali. Eu seria o primeiro a desvirginar aquelas paredes de fuligem. Paredes que não mais deveriam saber o gosto da pinga.
Mas a aventura ficaria para outro dia. A falta de tempo me castigava. E por que perder tempo com as ruínas de um engenho? Meu avô tinha pressa. Já devia estar perto das três da tarde. Um tempo de chuva se levanta lá nos fundos do horizonte. Os latidos de alguns cães se misturam aos primeiros trovões. Ao meio dos cachorros, dois italianos troncudos que falavam como vitrola. Não demorou muito para sermos intimados para um café na varanda da casa. Dali, o engenho se perdia entre o capim, os bambus, as laranjeiras.
Um gato preguiçoso dormia esticado sobre o rabo do fogão. Não se importava com a quentura dali. Acostumara ter sua barriga esquentada. O café derrama na xícara. Eu que queria sangrar minha boca no resto daquele engenho de bois, manchava-a no ouro negro que era colhido logo adiante do terreiro. Enquanto as conversas giram como aquelas xícaras em parques de diversão, dona justina, uma senhora com mais de 86 anos, falava sozinha. Embora estivesse ali ao lado, ela tinha o seu mundo. Não conhecia ninguém. Nem o filho, nem o neto, nem o cachorro, tampouco eu, que era a primeira vez que via. Mas isso não a impedia de conversar. Conversar com ela própria.
Embora não se queixasse de dor, estava numa cadeira de rodas, tinha que comer comida dada na boca, ser levada no colo para cama. Não vivia mais por si só. E com isso, ficava com suas cantorias e seus assuntos que chegavam com malas e malas de passado. Ela era do tempo do engenho. Será que ele também falava? Será que ele também cantava? Será que ele, o engenho, aprisionou sua alma naquela velha que falava alto e cantava sem parar? Perguntas que adoçam o café. Embora as palavras e o ritmo de dona justina repetissem-se a cada três, cinco minutos... Eu parecia estar em um filme. Um filme de pequenas coisas.
Ao sair, o latido dos cães, a hospitalidade dos italianos, a velha que não diz adeus, a estradinha de pedregulhos, o bananal, a ponte, o rio, o brejo e o engenho. Mais uma vez, ele me incita a percorrê-lo, mas o café era forte demais em minha boca. Não havia espaço para alucinações. Talvez os italianos já fizessem assim de propósito para ninguém cair nas tentações daquele passado tão sólido e exposto. E eu tinha certeza de que lá dentro, naquele ambiente escuro e úmido do engenho, não iria encontrar nada além das canções e das falas daquela velha senhora.
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