Daniel Campos

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Saudosismo

Saudade de quando a saudade era só mais uma profecia, como tantas outras que não se cumprem. Saudade do tempo em que você vinha, e o seu vir tinha uma elegância nunca dantes vista. Saudade daqueles saltos que deixavam a sensação de que a qualquer instante riscariam o piso em passos de tango. Saudade daquele sorriso que começava a se desenhar lentamente em sua boca e que morria vagarosamente em outras bocas, saudade, (confesso que até hoje, guardo alguns desses sorrisos intactos, por mais que o tempo ouse roubá-los). Saudade daquele olhar que tombava longe, tão longe que me fazia acreditar que a vida era possível.

Saudade do tempo em que eu podia conjugar o verbo esquecer, sem maiores esforços. Saudade das palavras simples que trocávamos como se nunca tivéssemos dito nada daquilo antes para alguém ou para nós mesmos. Saudade dos nossos silêncios, (tenho a impressão de que o último ainda não acabou). Saudade daqueles fins de manhã em que éramos começos. Saudade do que se imaginou e ainda se imagina. Saudade de uma espera que jamais foi tão bem-vinda. Saudade das nossas solidões. Saudade de onde podíamos chegar. Saudade da época em que a sua presença era permitida sem que houvesse censura por qualquer instância que se possa imaginar.

Saudade do tempo em que, ao menos, podia visualizar as suas costas sumindo no espaço. Saudade do tempo em que as alucinações só faziam parte dos roteiros dos filmes. Saudade dos filmes que nunca assistimos juntos. Saudade de como conseguia acalmar os nervos do mundo. Saudade do tempo em que podíamos nos desvencilhar do tempo. Saudade de quando tudo tendia ao infinito. Saudade da época em que nossas perdas eram passageiras. Saudade de quando a esperança nos espreitava de mais perto. Saudade das suas histórias, ou melhor, do seu jeito de contá-las. Saudade do seu jeito de lhe contar. Saudade dos seus momentos, alguns nunca confessáveis por palavras.

Saudade do vento rabiscando seus cabelos. Saudade do tempo em que testemunhávamos juntos os movimentos da terra (em alguns momentos também, testemunhávamos a falta de movimento da terra). Saudade de ver o sol tentando escapulir pelas folhas das árvores só para beijar o seu rosto com um gosto quente. Saudade dos vilarejos que me fazia crer que existiam. Saudade daquele encanto que se esparramava timidamente em seu corpo e que logo me tomava. Saudade do seu sono, dos seus olhos cerrados como cortinas de um palco. Saudade do tempo em que eu podia lhe saber, ou ao menos, achava que podia lhe saber. Saudade dos desenhos abstratos da fumaça do seu cigarro. Saudade das músicas que nos fizeram companhia e que nunca foram compostas.

Saudade das tantas descobertas que fizemos e que preferimos esconder. Saudade do tempo em que eu podia me perder no labirinto dos seus olhos. Saudade das tantas razões que considerávamos bobagens. Saudade das perguntas que nunca foram respondidas e algumas nem perguntadas. Saudade do tempo em que eu podia nos ver num futuro. Saudade do tempo em que eu construía o futuro e ele não nos desconstruía. Saudade daquelas coisas que ninguém acredita e que nós acreditávamos ou fingíamos acreditar.

Saudade do tempo em que o amor ia além da marca de um perfume. Saudade das nossas distâncias, as reais e as imaginárias. Saudade dos gestos que, num primeiro momento, passavam despercebidos, para só mais tarde serem compreendidos. Saudade daquela sua beleza contraditória, mas em perfeito equilíbrio, uma beleza selvagem e civilizada. Saudade do tempo em que as orquídeas (principalmente aquelas olhos-de-boneca) eram apenas orquídeas e não uma extensão de você. Saudade daquela sua presença súbita. Saudade do tempo em que a falta de adeus não ganhava o disfarce das lágrimas secas.

Saudade dos enigmas que um dia pensei que resolveria. Saudade de encontrar o mundo nas reações de seu rosto. Saudade das estrelas que nunca contamos. Saudade das fotografias que ficaram perdidas pelos lugares por onde passamos (mais uma vez, confesso que voltei para reencontrá-las, mas não consegui suportá-las sozinho). Saudade do tempo em que a sua poesia ia além das minhas lembranças. Saudade do tempo em que a saudade não era vivida por inteiro.


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