04/09/2011 - Refeição literária
Amanheceu e não tomou o café da manhã de costume. Torradas, sucos, geléias, pães, frutas ficaram sobre a mesa. Intocáveis. Estava sem fome. Ao menos, sem fome de comida. Ao menos, daquele tipo de comida. Sua mulher estranhou. Ofereceu-lhe então ovos mexidos, bolos de cenoura, pães de mel. Ele torceu o nariz. Estava entojado daquelas iguarias. Ela ainda tentou mais uma vez: champanhe? O não veio como num estouro de rolha, alto e seco.
A filha, aproveitando da situação, sugeriu que o pai pedisse uma pizza. Ele riu e saiu da mesa às pressas. Pegou um paletó e saiu dizendo que ia comprar comida. A esposa não entendeu nada e a filha lamentou a falta da pizza. Horas depois chegou com sacolas e mais sacolas. Mas não eram sacolas de supermercado com legumes, verduras, carnes, frios, enlatados supérfluos... Eram sacolas de livrarias. Pelo menos cinco delas. Nem sinal de comida.
Foi então que ele disse que as compras foram ótimas e que ela já podia ir ligando o fogão, o forno, o liquidificador para adiantar o preparo da sua dieta. Ela achou que tratava de uma brincadeira, mas ficou boquiaberta quando ele começou a temperar um
Dostoiévski com azeite extravirgem. Pensou que o marido havia enlouquecido. Só não sabia se aquilo se tratava de um crime ou de um castigo.
E não parou por aí. Pegou peças de Shakespeare e Nelson Rodrigues e Chico Buarque e colocou tudo numa mesma panela. Só de pensar na textura daquele caldo teatral sua boca enchia d’água. Chorava descacando Schopenhaeur como se descascasse cebolas. Fez um assado com a odisséia de Homero e um suco com os poemas de Mario Quintana. Para acompanhar, um purê com a filosofia de Nietzsche. De sobremesa? Prosas recheadas a Clarice Lispector.
A mulher fechou os olhos da filha que fechou a boca da mãe. O cachorro corria para lá e para cá uivando como se a loucura fosse contagiosa. O homem, que havia pendurado o paletó na cadeira, manuseava os talheres, cortando versos de Drummond enquanto espetava contos de Machado de Assis. Ora falava de boca cheia, deixando à mostra as letras de um romance pós-modernista, ora comia todo educado, como um soneto de Bilac.
Ao final das contas, não cabia a mulher fazer mais nada, apenas tomar um antiácido com borbulhas de auto-ajuda dignas de Paulo Coelho.
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