Daniel Campos

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18/04/2011 - Prosador

Como um caçador da saudade, sento-me diante da máquina e busco a mulher amada, em momentos vividos ou somente imaginados, pelas teclas que se espalham sob minhas mãos. Como não sou de fumar, não tenho o artifício do cigarro. Como minha sala não tem janela, não vejo estrelas ou ondas de pássaros ou de um mar bravio. Sou eu e meus sonhos e minhas lembranças dividindo a mesma cadeira. Alívios e correrias. E é assim que letra a letra, espaço a espaço, ponto a ponto, vou compondo-a numa crônica, num conto, num poema...

Muitas vezes, olho ao redor e espero que ela, a mulher amada, surja de uma gaveta, de uma pasta, de uma porta que não dá para lugar algum. Chego a ouvir seus passos que me fazem caminhar em círculos pela página em branco a procura de um começo ou de um fim ou de um meio. Criá-la a partir de linhas ou versos não é um processo fácil e nem deveria. A mulher amada é de uma complexidade, de uma dor, de um balançado capaz de travar qualquer prosa ou prosador.

Transformar sua carne, seu espírito, seus jeitos e trejeitos em texto não são tarefas simples e diretas. Trata-se de um ofício que exige inspiração e suor. Escrevê-la em todos seus fatos e feitos é uma arte penosa, prazerosa e, até mesmo, duvidosa. Afinal, o número de incertezas que surgem diante do teclado é comparável aos inúmeros pontos de luz e sombra que se avizinham ao longo do perímetro de sua silhueta. Para ter frases de sentimento é preciso abandonar o tecnicismo das escolas enchendo sacolas e sacolas de coisas do coração.

Escrever a mulher amada é um trabalho de muito risco e pouco juízo, já que ela surge inesperada a cada olhar. Infalível mesmo é fechar os olhos, colocar a emoção entre os dentes e tocar as teclas como se tocasse seu corpo, seus desejos, suas manhas. É preciso se deixar levar pela emoção e caprichar no estilo. Escrevê-la é como um vício sem remédio, que se aprofunda a cada escrita. É a eterna busca da perfeição entre os olhos da aflição. É condição de sobrevivência. É um sofrimento digno de parto. É uma carência só suprida durante o processo criativo.

O processo de escrever a mulher amada seja ele rápido ou prolongado, bruto ou elaborado, imediato ou preparado, traz-me prazer e dores em doses desmedidas.


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