Daniel Campos

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Promessas de cacharrel

Os microfones dispostos em meio aos arranjos de flores envelhecidas aguardam o começo da cerimônia. Atrás de uma plaqueta com inscrições minúsculas, ela se escondia. Mas a mulher, respeitada em todo o mundo, doutorada em micro-partículas, era tomada por uma vontade de falar coisas macros. E no seu entender, o céu, o sol, o amor eram macros. Enquanto outros especialistas da área faziam análises ligadas ao comportamento humano diante das micro-partículas, ela queria falar de amor.

Uma sensação de falta de ar, embora alguns ventiladores tentassem imitar um vento que não existia. Faltava espaço. Uma multidão se aglomerava e se confundia. Os rostos tinham as mesmas expressões, os mesmos desenhos. As luzes frias roubavam o brilho que restava em alguns olhares. As flores se esparramavam secas, embora fosse primavera.

Falava-se em ética, em isenção, em credibilidade,.., só não se falava da vida em si. Talvez porque se pensasse que a vida precisava ser objetiva, racional, neutra, mecânica, enfim, como as linhas de um documento qualquer. Não, não se seguia as linhas das mãos numa magia cigana. Aliás, por onde andava a magia? A razão sufocava. O sol, numa febre de malária, ardia. E sonhos e pesadelos voavam como mosquitos barulhentos ao pé dos ouvidos.

O sol ardia e gemia e subia e caia em corpos febris. Um falatório sobre qualquer coisa que não fosse o sol. Ninguém esperava pela lua. Falava-se em mercado, em pesquisa, em credibilidade, só não se falava mesmo das coisas simples da vida. Uma gente se aglomerava e se confundia. Parecia que seus passos tinham as mesmas expressões e o mesmo desenho daquele sonho em rascunho. As flores secas queriam dizer algo que não se entendia. As luzes frias embaçavam os olhos que já acostumavam a não ver muito além.

De repente, faz-se o inesperado.

Botas cobriam boa parte das pernas e equilibristas desciam os degraus do auditório. Difícil entender como o equilíbrio era possível. E tinha um balançado. E tinha uma graça. E tinha uma beleza de jardim de inverno. Os cabelos escorriam corriam fugiam pelas costas que se oferecia como calda em posta. O rosto fugia dos padrões. Um encanto abstrato e que se fazia tão perto. Os cabelos salpicavam as costas de lã. Uma blusa cacharrel estrangulava seu pescoço. Mangas compridas. O rosto trazia traços rústicos e, ao mesmo tempo, frágeis. Silêncio. Ela tinha um quê de adeus inacabado.

Sem obedecer às regras e aos padrões daquela realidade, a mulher não sobrevivera muito tempo. Se é que existia de fato alguma mulher e algum cenário. O delírio. O calor. O falatório continuava e com a mesma voracidade que apareceu, sumiu. Isso mesmo, a criatura, da qual só se sabia o sexo, desaparecera em meio ao cenário artificial. O vento, as luzes, as flores, os rostos eram artificiais. Tão concretos e tão falsos. Tão microscópicos a ponto de converterem o mais fanático dos céticos.

Em meio ao falatório político, faltava promessa. Promessa de que o sonho era possível. Promessa de um reencontro. Quem sabe, mais tarde. Quem sabe, quando o sol findasse e a lua trouxesse um pouco de romantismo macro. Quem sabe.


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