Daniel Campos

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Por onde anda a liberdade?

O céu escuro ganha riscos. Riscos finos e coloridos. E não são riscos de cometas apressados ou, de fenômenos sobrenaturais ou de fogos de artifício perdidos no tempo. O céu escuro, coberto por efeitos especiais (aqueles que se costuma encontrar nos cinemas), vê-se cortado por mísseis. Mísseis que, infelizmente, deixam o mundo da ficção.

Enquanto o céu escuro é violentado, soldados marcham sem se perguntarem pela razão daquela marcha. Soldados marcham e crianças perguntam por seus pais. Soldados marcham e crianças deixam de ser crianças. Soldados marcham e crianças se encolhem num canto, não menos escuro, diante do medo das explosões que se fazem lá fora.

Os desertos, nem tão desertos assim, e o barulho apocalíptico das explosões. Grandes manchas de fogo transformadas em fumaça. Olhos cansados de guerra nem reparam na magia das cores. Um balé de cores. Quando muito, os olhos se enchem de um gosto de vingança, enchem-se de memórias, enchem-se de lágrimas de areia. As lágrimas são tão brutas que escorrem como a areia daquele deserto quando posta nos braços do vento.

Os olhos se enchem de fé. A fé num presidente, num líder, num ditador, numa espécie de Deus,... seja lá o nome daquela criatura. A fé, esse sentimento estranho que supera a vida de um filho, o amor de uma mulher, a vontade de se sentir covarde. Como todos os sentimentos, ela, a fé, foge do controle e então se torna capaz de justificar um fim... O próprio fim.

Nem mesmo a histórica união entre França e Alemanha nem mesmo o grito vindo da Praça de Moscou nem mesmo as palavras mais duras do Papa fizeram-se mais fortes do que o mundo econômico que envolve a Casa Branca. Nem se Sadam Hussein, Bin Laden e todos os terroristas sem nome se rendessem juntos, de nada adiantaria. Nem se Jonh Lennon surgisse, como quem surge do nada, e cantasse Imagine no meio de Bagdá. Nem assim, o céu iria ser poupado dos riscos.

Ideologias, imagens, relações são esmagadas pelas esteiras dos tanques. O exército marcha esquecendo-se de que as flores podem vencer os canhões. E se não bastasse os riscos previstos, o céu escuro pode ganhar uma nuvem química. Das decisões erradas pode surgir um novo Vietnã. Dos tantos medos guardados pode surgir uma nova Hiroshima. Da guerra só não pode surgir um novo mundo. Soldados criam guerras, criam armas, criam estratégias, criam desavenças, criam até saudades, mas não criam vidas. Eis quem sabe a causa da guerra: a frustração de não criar vidas.

Os riscos avermelhados/alaranjados/esverdeados soltos no céu negro. Os riscos de lágrimas marcados nos rostos de ambos os sexos. Os riscos de sangue nos corpos esparramados pelo chão. Os riscos de se viver em outro continente, de falar outro idioma, de rezar para outro Deus, de carregar outra bandeira...

O céu escuro de Bagdá ganha as telas da televisão como se não fosse o mesmo céu de bilhões de chineses, como se não fosse o mesmo céu do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara, como se não fosse o mesmo céu do mais desesperado dos pacifistas, como se não fosse o mesmo céu mesmo que se estende sobre os enamorados que nem pensam na guerra, como se não fosse o mesmo céu que resvala na Estátua da Liberdade.

Em Bagdá, milhares de iraquianos são mortos pelo simples fato de serem iraquianos. Nos EUA, agentes americanos, com mãos armadas, protegem a Estátua da Liberdade. O céu de Bagdá se enche de riscos de sangue para que uma estátua continue em pé. Uma estátua feita de concreto e concreto. Da liberdade restou a falta de sentimento do concreto.


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