Daniel Campos

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18/07/2010 - Ovos

A gema era tão vermelha quão o sangue da terra em que lavorava o dono daquelas galinhas. Os galos eram furta-cores, coloridos, índios de canelas alongadas e esporas afiadas. Cristas em riste, eles cocoricavam por aquelas terras descortinando o véu da noite e livrando suas noivas do açoite. Noivas de tantos vestidos e matrimônios. Com suas penugens pretas, marrons, brancas, ruivas e carijós desfilavam pelo terreiro arrancando suspiros dos frangos num amor praticamente impossível. Afinal, o destino dos frangos não era tão romântico assim: ou fariam companhia a uma boa polenta ali no sítio mesmo, ou viajariam até a cidade para conhecer outras bocas, ou ainda, se dessem sorte, substituiriam algum dos galos naquele galinheiro.

Entre quirelas, capins, verduras e restos de comida, aquelas galinhas iam ciscando para lá e para cá e fabricando de forma artesanal as jóias daquele lugar: ovos caipiras. Os ninhos, feitos de palha de milho ou capim seco, abrigavam aquelas galináceas por volta das dez, onze horas da manhã. Era o horário preferido por elas para botarem seus ovos. Elas cacarejavam e cantavam o canto dos ovos que vinham ao mundo num corpo tão frágil e quente. Seu Líbio, muitas vezes, bebia os ovos ali mesmo como um lagarto daqueles que ele fazia questão de afugentar. Mas o que ele mais gostava era do ovo frito por sua mulher, dona Adélia, que pacientemente jogava, com uma colher, gordura quente sobre aquela gema formando uma película fina e avermelhada.

E quando, sobre o arroz com feijão, ele espetava aquele ovo com o garfo, um néctar vermelho tingia o prato dando um colorido especial àquela cena gourmet. Além da cor e da textura, o perfume daqueles ovos era único. Tanto que eram cobiçados e, até mesmo, disputados por muitos que queriam comê-los fritos, cozidos, mexidos ou batê-los em pães e bolos que ficavam com a massa vermelhinha e o cheiro caipira. Não é à toa que alguns queriam comprar três dúzias de uma vez e outros faziam de tudo para roubar alguns. Depois de caírem no gosto da Ouvidora-Geral da Presidência da República, os ovos fizeram o que aquelas galinhas jamais conseguiram: voaram um vôo alto e longo, do interior de São Paulo à Brasília.

Com a morte de seu Líbio, os galos deixaram de cantar e as galinhas, de botar aquelas gemas tão vermelhas quão o sangue daquela terra que deixou de existir.


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