26/06/2008 - Os pés da mulher amada
Seus pés deslizam em minhas retinas como duas conchas pequeninas vindas de um mar onde Netuno anda a assobiar canções de amor. Lá estão eles, pelas pedras do caminho, brincando de esconder nas frestas da sandália como crianças arteiras. Andam quase que totalmente expostos. São de uma semi-nudez que só aguça os fios da minha imaginação. No entanto, são tímidos como eles só. Em seu dorso, um ramo e algumas flores. Ali, a primavera é eterna. Seus dedos, pequeninos, simétricos, avizinham-se perfeitamente, convivendo em grande harmonia. Se fizer silêncio, é capaz de ouvi-los cochichando alguns versos. Suas unhas, afrancesadas, fazem biquinho antes de aceitarem seguir em frente. Puro charme!
À primeira vista, urge-me uma vontade de ficar olhando-os, paquerando-os, pelo infinito. Nas outras, ungi-me um desejo de tocá-los, de acariciá-los, de cheirá-los, de lambê-los para sentir o gosto de suas últimas pegadas. Deveria sentir cócegas e, de vergonha, mudar de cor. E por falar em coloração, qual seria a temperatura deles? De longe, parecem frios, como répteis que precisam ficar ao sol para se manterem vivos. De perto, ardem febrios. Difícil compreendê-los e mais ainda, sabê-los. Eram bronzeados como os pés das areias de uma praia distante. As camadas de pele os vestem de forma lisa e macia, como tecido fino. Será organdi ou musseline? Ah! Como eu queria andar naqueles passos e me entregar aos caminhos da mulher amada.
Um dia, os tomei para mim. Ela dormia. E eu pude acariciar cada milímetro de seus pés, lendo linhas que cigana alguma ousara ler. Não sei se ela fingia o sono só para deixar seus pés viverem aquele momento ou se dormia de fato e de direto. Deveras, eles tinham sede de caminhar, de conhecer, de sonhar e a cansavam. Sob a regência de meus desejos, os pés se contorciam, gritavam, suspiravam, sorriam, choravam de um prazer, até então, desconhecido. As unhas, bem feitas, roçavam as minhas mãos e as cortavam em traços de sangue. Não entendia ao certo o que acontecia ali, mas era algo fora do comum. E eu sabia que o incomum era lei diante da mulher amada.
Em seguida, me ajoelhei diante deles, como que me esvaindo em uma devoção antiga. Quando dei por mim, não havia mais divisão entre pés, boca, dedos, olhos, unhas, nariz, pele e ouvidos. Eu queria me embrenhar por toda aquela paisagem. Eu queria sentir o hálito, o paladar e a música vinda daquelas criaturas. E eles sabiam cantar como ninguém. Pouco a pouco, fui desvendando o universo dos pés da bem-amada. E tive a certeza de que eles não eram desse tempo. Eram de um tempo paralelo. Já ouviu falar em outras dimensões? Pois é, os pés que tinham beleza e força próprias habitavam-nas. Ou melhor, habitavam essa mulher que é uma dimensão única orbitando no universo.
Deste dia em dia, caminho nos rastros daqueles pés, completamente entregue aos rumos e aos destinos da mulher amada.
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