21/12/2008 - Olhos de terra
O trator, na magia das rodas-gigantes, vai rodando pela terra que nos leva a rodar com ela. Sentado na carenagem do pára-lama vou de passageiro, de aventureiro e de companheiro de um tempo que já longe se vai. E ali, naquele altiplano, vou pela estreita estrada de terra escorrida entre árvores, plantações e o desfiladeiro da linha do trem. Na direção, como capitão daquelas terras, segue Liberato Barbosa, também chamado por Líbio ou vô. A estrada é curta perto do risco que nos rodeia. O sol, feito um pássaro de luz, pousa na palha dos chapéus e fica por ali, cantando seu canto de calor.
Na estrada esburacada, o trator pula igual cavalo xucro. Era preciso travar os dedos na aba do pára-lama para não ficar no chão. Depois de uma curva fechada para a direita, o vento cítrico de um pomar de limoeiros nos leva ao interior de uma terra desconhecida. Por mais que já tenha passado ali, cada nova ida é como se fosse à primeira. Ao lado de um pé de eucalipto maduro, a porteira aberta era sinal de boas-vindas. A casa, sempre com as janelas da frente fechada, tem um jardim de plantadeiras, arados, grades e outros implementos agrícolas. Galinhas, cães e patos rodeiam o trator que contorna a casa.
Os latidos de nove cachorros de diferentes cores, tamanhos e raças dispensam campainhas, buzinas ou batidas de palma. Pela porta dos fundos, que dá para uma cozinha com fogão à lenha, sai Berto. Na verdade, Luiz Roberto Morari. Descendente do lendário Vitorino, um dos desbravadores daquelas bandas. Sai com um cigarro de palha entre os dentes, olhando pro céu que a todos cobre. Zinho, seu irmão, está no mangueiro cuidando das vacas de leite e Elisa, sua esposa, às voltas com as tachadas de queijo fresco.
Mas o que nos levou até ali foi os porcos. Na verdade, uma leitoa para o dia do Natal. Seu Líbio havia desistido de criar os bichos depois de uma corrente de assaltos desencadeada pelo Chão é Seu, uma espécie de favela rural instalada a poucos quilômetros dali. Os marginais que moravam ali roubavam de um tudo, desde casas até cachos de banana. Contudo, ao olhar aqueles leitões rosados, caminhando pelo chiqueiro enlameado, quem se sente marginal sou eu. Pelas costelas, sobe a vontade de nunca mais comer carne de porco. Todo final de ano era a mesma coisa, eu saia de lá decidido a virar vegetariano.
O grito dos porcos, rugindo, correndo, tentando escapar do destino. Era difícil imaginar aqueles bichinhos inofensivos com maçãs na boca em cima da mesa natalina. Tento me distrair com os cachorros, com o gado que vai pastando ao fundo, enquanto meu avô escolhe o prato principal. Não podia ser nem muito gordo, nem muito magro. Pensava na vantagem de levar a carne bruta ou limpa. Levaria a cabeça ou não? E os miúdos? Em sua cabeça, a preocupação se durantes os vinte dias anteriores ao abate seriam alimentados somente com milho, para a carne não ter gosto ou cheiro de ração ou lavagem. Tudo era tratado de forma natural, mesmo que sob os olhos das vítimas.
"E aí Daniel, o que acha?" Eu de longe balançava a cabeça dizendo que concordava com a escolha. Não tinha coragem de olhar diretamente para o porco e dizer: "daqui a alguns dias eu vou mastigar voc". Preferia ficar sem saber o rosto do bicho. Aliás, saia dali convicto a virar mesmo vegetariano. É claro que essa convicção iria desaparecer depois que eu encontrasse o porco pururucando entre garfos e facas. O couro estralando nos dentes. Bem, mas isso era só depois. E já que nessa expressão, depois dos acertos de valor, data de entrega e forma como a carne seria entregue, começa um papo sobre plantação, lavoura, chuva. Era o cotidiano do campo que brotava naquela roda feita de terra.
O som do motor do trator cuspindo fumaça no céu anunciava a despedida. Era hora de voltar àquela estrada que sempre se abriu desconhecida aos meus olhos. E por falar em olhares, a estrada vai me engolindo nos olhos vermelhos da poeira, nos olhos verdes do meu avô, nos olhos molhados do mato, nos olhos vazios da linha do trem, nos olhos de medo do leitão, nos olhos de dor de um tempo que não voltaria mais. Hoje, no choro da saudade desse tempo roceiro, entre a água e o sal, escorre pela minha face um pouco daquela terra.
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