Daniel Campos

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30/10/2008 - Olhos de peixe morto

Os olhos tristes do peixe na banca da feira são tão profundos quão o mundo que está ao nosso redor. Olhos de uma tristeza que aflora às escamas. Olhos parados, cansados de tanta guerra. Olhos vidrados, que não enxergam o anzol por detrás da isca. Olhos molhados, cujas lágrimas de sal nunca foram vistas. Olhos enlaçados por redes, cortados pela lâmina fria de um sangue que já não jorra. Olhos de peixe grelhado, ao molho, ensopado, ao azeite, assado, cru. Olhos de peixe cru. Olhos de peixe morto.

O mundo está com cara de peixe morto. A inflação subiu, e daí? O feijão está em alta, e daí? O bandido fugiu, e daí? A ética está em falta, e daí? O salário sumiu, e daí? O caso não ata nem desata, e daí? O homem caiu, e daí? O tempo nos maltrata, e daí? A tristeza pintou o céu de anil, e daí? A fome está farta, e daí? A rosa tombou ao fuzil, e daí? A briga não se aparta, e daí? Eva fugiu com o macaco mandril, e daí? E daí, a gente tem olhos de peixe morto.

O mundo está de mãos atadas, como peixe na tarrafa. O mundo está preso, como peixe no aquário. O mundo está alvoroçado, como peixe nas migalhas de pão. O mundo está às minguas, como peixe no corrego seco. O mundo está escondido, como peixe na toca. O mundo está sem gosto, como peixe sem tempero. O mundo está fedendo, como peixe podre. O mundo está fritando, como peixe no azeite. E onde está a piracema, para os peixes se amarem? A piracema não veio. E, na falta de amor, o mundo ficou com olhos de peixe morto.


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