19/03/2010 - “Olha pra frente que de trás cuido eu”
Era noite alta e grande. Perto da meia-noite, a lua de tanto minguar se apagou. Tudo ficou negro. Tudo ficou escuro. Pelos rumos da linha do trem, um homem andava farto de medo. O vento soprava fazendo com que os galhos das árvores gemessem. Um vento frio em pleno verão. As moitas de capim sacudiam diante daqueles sopros de ar. O mato parecia ganhar vida. Era uma sensação horrível ver tudo se mexendo ao seu redor. E naquela noite ele não havia tomado um gole sequer de cachaça. Estava tão sóbrio quão sua finada mãe (que Deus a tenha).
Não havia sinal de pessoa alguma por ali. Seu destino ainda estava longe. Era preciso andar muito cortando aquelas terras desertas para chegar até sua casa. Não havia barulho de grilo, nem de cachorro, nem de coruja. Os bichos estavam escondidos e calados como que amedrontados por alguma coisa. Mas aquele homem de meia idade precisava vencer o medo e continuar. Dava alguns passos e olhava para trás. Então começou a rezar para que seu anjo da guarda o proteger. Rezava alto para afastar alguma assombração desavisada. Tremia dos pés à cabeça. A voz chegava a sair aos socos.
Se ao menos passasse um carro ou uma carroça ou até mesmo um conhecido a pé. Se ao menos Tigre, seu cachorro perdigueiro, fosse ao seu encontro. Por que nessas horas nunca passa um cavalo selado, pronto para montaria? Ele estava mais sozinho do que nunca. E o povo dizia que aquela estrada era mal-assombrada. E quanto mais ele andava, mais medo acumulava. Foi então que começou a escutar uns passos seguindo seus rastros pelo estradão. Talvez fosse eco. Mas ali não tinha dessas coisas. Além do mais, os passos que o seguiam eram mais fortes e acelerados do que os seus. Tinham mais peso e ritmo.
Talvez Deus atendesse suas preces colocando um amigo para lhe fazer companhia. Pensando nisso, resolveu parar sua caminhada e esperar pelo suposto colega. Só que ao fazer isso, o caminhar que vinha logo atrás cessou. Então voltou a andar e o som dos passos renasceu ainda mais próximo. Só podia ser assombração. O homem começou a suar em bicas. Apertou a passada a ponto de fazer suas botinas rasgarem aquele chão, mas quem vinha em seu cangote parecia caminhar sempre mais rápido e mais perto.
Então, ele começou a andar quase que totalmente olhando para trás. Já perdia o rumo, trombava com árvores, tropicava em pedregulhos, cortava-se nas cercas de arame farpado. No entanto, não deixava de olhar para trás. A aflição era tanto que rezava a oração para seu anjo da guarda toda errada. Ele não gosta que conte isso, mas molhou as calças por acreditar que tinha chegado sua hora. Já se preparava para dar de cara com o coisa-ruim em pessoa. Então, começou a correr. Mas seja lá quem fosse que o seguia parecia estar colado em suas costas.
Olhava e voltava a olhar e olhava novamente para trás e não conseguia ver nada. Misericórdia! E justo naquele dia ele não carregava nem mesmo um santinho ou uma espada de São Jorge. Estava desprotegido. Seria uma vítima fácil. Começou a chorar, a gritar, a soluçar, mas aqueles passos continuavam a acompanhar os seus. Pediu mais uma vez que seu anjo da guarda o livrasse de todo o mal, amém. Mas já parecia tarde para um salvamento. Seu coração já pulava para fora da boca. Seu corpo arrepiava em calafrios. Seus pés já não lhe obedeciam. Era o fim da linha.
Foi quando ele, no ápice da desconfiança, virou-se para trás pela enésima vez. Não viu nada, mas sentiu o peso de uma mão de homem esbofetear seu rosto. Se ele pudesse se olhar no espelho, veria um vergão com cinco dedos marcados em vermelho. Imediatamente, o tapa fez com que ele se voltasse para frente e cambaleasse por alguns metros. Em seguida, ainda tonto, ouviu uma voz trovejante lhe ordenar:
- Olha pra frente que de trás cuido eu.
Embora a voz não tivesse assinatura e nem dissesse mais nada, o homem caminhou dali por diante rezando para que uma assombração aparecesse. Afinal, nada poderia lhe colocar mais medo do que seu próprio anjo da guarda.
Observação do autor: Adaptação de uma das muitas histórias vividas e contadas por Liberato de Lima Barbosa, meu avô.
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