28/06/2015 - O tempo de seu Antônio
O tamanho, a careca e a simpatia não intimidavam ninguém, mas o olhar firme era capaz de colocar qualquer um pra correr. Os olhos de seu Antônio Bueno de Campos chegavam a gargalhar junto com ele em suas piadas, mas quando se impunham metiam mais medo do que suas histórias de assombração. Muitas vezes, sentado numa cadeira de ferro com tecido esticado, quando me perguntava das notas da escola chegava me dar um frio na barriga. Para minha sorte, sempre trilhei pelas notas azuis. Suas perguntas eram incisivas, feitas repetidas vezes, até que ele se convencesse da resposta. E era melhor não levar problema ou preocupação alguma para ele, pois aquilo não saia de sua cabeça e volta e meia rendia prosa. Era o jeito de ele cuidar da família, de tentar proteger aqueles que ele fazia questão de estarem por perto. Queria cada um cuidando de sua vida, mas a uma distância em que ele pudesse acompanhar. Eu, falando em sorte novamente, tive a oportunidade de pegá-lo mais manso pela velhice. Mesmo assim, tinha uma rigidez, um gosto de ver tudo e todos na linha. Não me lembro de tê-lo visto chorando. Suas lágrimas eram secretas e por escorrerem sempre para dentro foram dando aquele caráter de diamante aos seus olhos: encantadores, mágicos, mas duros. Fruto da criação bruta, por muitas vezes ter sido tratado feito bicho e terem roubado muito do seu futuro. Seu Antônio sempre precisou acordar dia após dia para sobreviver, para dar conta daquele dia. Os dias futuros não importam. Por mais que apreciasse uma viola, uma sanfona, uma roda de catira, seus parceiros de dança tinham de ser a enxada, o machado, as guias do arado puxado por boi. As esporas de uma vida sem regalias lhe deixaram marcas profundas que o faziam, a todo custo, querer que tivéssemos um caminho melhor que o dele. Estudou quase nada, mas via na nossa educação a certeza de uma vida que ele não teve. Ainda guardo até hoje a alegria daqueles olhos de me verem formado em Jornalismo. Tinha orgulho do meu caminho, dos meus feitos. Foi ele quem me deu o meu primeiro e único violão. Foi ele quem me dava público seja levando seus passageiros para verem meus quadros expostos nas paredes de casa ou carregando minhas crônicas, publicadas no jornal da cidade, para suas praças. Aqueles olhos fundos viam em mim o que ele não pode ser e, por mais contentes que estivessem, continuava com aquele quê de dureza para que eu não me perdesse. Aquele homem de aparência frágil, sempre vestido com mais blusas do que o necessário para espantar o frio acumulado em tantas noites passadas na lida dentro de um carro ou na boleia de um caminhão e de sandálias de dedo demonstrando claramente que ele precisava de tão pouco, sempre quis o melhor para mim. E, na cabeça dele, esse melhor era justamente um caminho diferente do dele. Nunca teve estia em sua jornada. Capinou. Carregou, descarregou, voltou a carregar caminhões de lenha. Tocou boi. Arou. Rodou pelas estradas e pelas memórias de muitos. Um dos principais passageiros do seu táxi era o ontem. Seu Antônio quase nunca falava de futuro, sempre nos contava sobre o que já tinha passado. É como se ele, tão direito com as regras de trânsito, insistisse em ir pela contramão da vida. Remoía incontáveis vezes histórias que eram suas ou que pegava emprestado. E contava sempre todas elas com muita riqueza de detalhes. Era navegando no mar de suas histórias que ele rompia com sua realidade que não lhe permitia ousar. Comia praticamente o mesmo arroz branco com frango frito todos os dias. Dormia assim que o dia escurecia e acordava de madrugada e ficava ouvindo modas caipiras num radinho até o dia amanhecer. Sentava no banco do jardim e ficava por horas olhando o movimento dos passarinhos que vinham se refestelar num bebedouro. Ia para suas praças, a do ponto de táxi e a de caminhada, perto de sua casa, tentando fazer o dia passar. Por isso, as histórias vividas por ele de forma direta ou não, faziam-no romper com sua rotina e navegar num oceano de sensações, de impressões, de exclamações. Tornou-se um exímio contador de histórias. Para ele, cada detalhe precisava estar no seu devido lugar de forma da muito da bem feita para que a narrativa alcançar o seu resultado. Colocava tudo no seu lugar, seja cada peça do quebra-cabeça do acontecido, seja cada parafuso que ele achava perdido na rua, seja cada engrenagem dos relógios que ele montava e desmontava com precisão cirúrgica. Perdi a conta de quantas vezes o vi as voltas com seus relógios de pulso ou de bolso. Dava corda, limpava, consertava, acertava a hora. Só se esquecia de dar corda em seu tempo interior que, aos olhos daqueles que não sabiam o compreender, estava sempre atrasado, marcando o ontem, o anteontem, o trasanteontem...
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