31/03/2010 - O sol da saudade
Bufando de ardor, o sol reclinou-se até se transformar em reflexo nos óculos escuros de um senhor de cara amarrada que passava bambeando pela rua. Depois de noventa anos, já tinha dificuldade o suficiente para andar sem esbarrar nos obstáculos que a cidade grande colocava em seu caminho. Para correr o risco de morrer na próxima esquina não precisaria ser atrapalhado pelo sol. Sendo assim, o que, afinal, o astro-rei queria com ele?
Certamente, queria perguntar o segredo de sua longevidade, ou o nome de um remédio para reumatismo, ou quem ganhou o jogo de bocha ontem no parque. O que um velho fraco e cansado poderia fazer para ajudar o sol? Se é que o sol queria alguma ajuda. Talvez ele só quisesse atormentar aquele senhor que levava um jornal amassado debaixo do braço. Seja o que fosse, ele insistia em lançar raios ultravioletas contra aquele óculos esverdeados.
O velho também era teimoso. Não mudou de rumo, não buscou uma árvore para se proteger, tampouco chamou um táxi. Continuou andando a pé no sentido contrário ao sol. E suas vistas foram enchendo de uma luz estranha. Então, começou a enxergar pessoas que não via mais e momentos vividos há muito tempo atrás. Podia ser miragem, mas parecia tão real. Sentia novamente o calor de abraços, gostos e beijos. Depois de quase quinze anos de silêncio, voltou a sorrir e a cantar.
Para muitos, apenas um velho maluco andando ao sol. Para outros, o resultado de uma insolação que cozinhara os miolos daquele senhor. Já para ele, uma febre chamada saudade.
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