O racismo precisa de uma resposta
Antes de velejar texto adentro, queria pedir benção para aquela que é uma das melhores personificações de justiça, para aquela que é guerreira dentro e fora dos tribunais, para aquela que acredita sonha batalha por uma causa maior: o humano. Falo da doutora Luislinda Dias Valois Santos, que motivou a construção destas linhas. A benção, Luislinda de Todos os Santos e muito axé a todos os negros e negras, de pele ou de coração, como este poeta aqui, que sonham por um Brasil mais justo, mais igual e, sobretudo, mais poético. Pena que esse país não seja a mesma aspiração dos donos da ordem e do progresso.
Ordem? Progresso? Hepa hê!!!!!!!!!!!!!
Em troca do progresso, a população de Santo Amaro (BA), onde 90% dos habitantes são descendentes de negros, está sendo contaminada por materiais pesados, como o chumbo. Na zona costeira do Ceará, pescadores e povos indígenas sofrem com a destruição causada pela especulação imobiliária. No Espírito Santo, fazendeiros ocupam terras quilombolas e indígenas para plantar eucalipto. O Parque São Bartolomeu, na Salvador da doutora Luislinda, um dos templos sagrados do candomblé e da mata atlântica, foi transformado em um grande depósito de lixo. Os quilombolas de Goiás estão sendo cercados pelas plantações de etanol e pressionados pelos grandes latifundiários. No Vale do Ribeira, na divisa de São Paulo e Paraná, caiçaras, índios, pescadores e quilombolas sofrem fisicamente as conseqüências da contaminação por chumbo, zinco, arsênio e se preparam para perder o pouco que têm na construção das barragens de usinas hidrelétricas.
De repente, no solo vermelho de índios de tantas tribos, navios negreiros despejam milhares de negros arrancados de suas terras. As escravas são estupradas pelos brancos e dessas barrigas nasce o começo da nossa miscigenação. E os intelectuais ainda têm coragem de dizer que nós vivemos uma democracia racial. Hipocrisia pouca é bobagem. Dessa mistura de raças, nasce a periferia brasileira. Ou melhor, a maior parte dela. Nasce os filhos alegria, da música, do trabalho e também, do descaso de uma elite racista. A elite, que toma conta do que é público e do que é privado, domina e molda o ambiente a sua maneira e deixa o pior para esses povos que são negros, que são mulatos, que são índios, que são, como eles gostam de chamar - equivocadamente falando - a minoria.
É um fato no mínimo curioso que essa minoria seja formada justamente pelos moradores que tem de conviver com curtumes, minas de chumbo, terras alagadas, poluições industriais, pinguelas, desmoronamentos, violência, vielas, lixões... Pense: será isso pura e simples coincidência ou, parodiando Shakespeare, há algo de podre no reino da Dinamarca? Não é preciso ser um detetive inglês para constatar que as injustiças sociais e ambientais caem de forma desproporcional sobre as costas das etnias mais vulneráveis, que já sofrem em seu cotidiano com as barreiras criadas pelo racismo.
Para entender melhor esse contexto, lembro que, em 2006, uma empresa de couro iniciou a construção de um curtume na região do Baixo Acará (PA), nas margens da nascente do Igarapé Jacarequara, destruindo de uma só vez 13 hectares de terras de comunidades quilombolas. Ou seja, os negros pobres foram vitimados pela destruição ambiental e pelos riscos à saúde provocados pelo curtume enquanto uma minoria - agora sim - ficou mais próspera. Essa é a lógica que vem vitimando os brasileiros menos favorecidos numa das mais violentas formas de racismo já denunciadas.
Um racismo que arranca raízes culturais, histórias de vida e identidades de seres humanos como você em troca do vil metal. E assim como os negros, índios, nordestinos, pescadores, populações ribeirinhas, entre outros, mesmo não sendo alvos de rótulos racistas, são igualmente vítimas de preconceito. Muitas vezes esse racismo atua de forma parda, sem derramamento de sangue ou cobertura da grande mídia, mas esse processo velado é tão grave quanto qualquer outro. É assim que povoados vão sendo varridos do mapa como se nunca tivessem existido.
Pense nos grupos afetados pela discriminação que são condenados a viverem em locais com péssimas condições ambientais e obrigados a se submeterem a trabalhos de risco ou mesmo danosos à saúde. Na medida em que determinada comunidade não é mais útil ao capital ou passa a representar qualquer tipo de empecilho ao desenvolvimento, é eliminada. Como se imperasse a lei da selva, quem está na base da pirâmide social se vê obrigada a ceder espaço para imensos resorts construídos em praias habitadas por pescadores.
Essas comunidades estão em condição de vulnerabilidade por sua condição social e por suas características raciais e étnicas, que há séculos sofrem com as injustiças sociais e a discriminação racial. Eis o racismo ambiental que exilia, extermina, fere e mata. Essa forma de discriminação é causada pelos setores público e privado, que agridem o ambiente, a saúde, a biodiversidade, a economia local, a qualidade de vida e a segurança de seres humanos levando em conta a cor da pele, o salário, a origem...
R A C I S M O A M B I E N T A L. Seus ouvidos podem estar estranhando essa expressão, mas ela não foi criada há poucos minutos por este poeta para causar impacto. A primeira vez que se ouviu essa expressão foi em uma comunidade negra da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, no final da década de 1970. A partir da movimentação popular contra um depósito de resíduos tóxicos, descobriu-se que 3/4 dessas instalações estavam localizados em bairros habitados, em sua maioria, por negros. Embora seja antiga, essa expressão não tem o mesmo espaço na mídia porque não interessa a elite. Ela não é ensinada na escola porque pode ser recebida como um insulto pelos filhos do poder. Ela não é combatida pelo governo porque a política é uma das pilastras que sustentam essa barbárie. Ou você acha que os donos da ordem e do progresso vão querer ver revelado sua estratégia de poder. Afinal, isso vai contra a moral e os bons costumes.
Mais do que um motivo de indignação, mais do que uma violação dos direitos humanos, o racismo ambiental é o retrato nu e cru da nossa realidade. Ele denuncia a hierarquização social e a suposta superioridade de um grupo social, econômico ou político. Um grupo que se acha capaz de conduzir ações apocalípticas para uma multidão de "sem-oportunidades". É uma espécie de nazismo agindo sob a lógica do lucro. Eis a lógica que alimenta este racismo que, dia após dia, envergonha, humilha e vitima milhares e milhares e milhares. Diante da necessidade de darmos uma resposta a esse crime contra a humanidade, fecho o texto citando Herbert de Souza, o nosso querido Betinho: "em resposta a uma ética da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma ética da solidariedade". Pense nisso. Aliás, pratique isso.
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