22/08/2008 - O homem que sabe das coisas
Ele sabe das coisas. Não sei como consegue, mas as rodelas de abacaxi que vende são fartas de açúcar a ponto de provocar um coma profundo em que as devora. Um verdadeiro néctar saído daquela casca espinhosa. E como boa abelha que sou, trato logo de me afogar ali. Olhando assim, ninguém daria nada por aquele homem de barba por fazer. Mas ele é doutor em fruta madura. Como alquimista das frutas, vai misturando seus perfumes e oferecendo fragrâncias afrodisíacas ao nosso estômago.
Além do abacaxi, morangos escandalosamente vermelhos, mamões pequeninos, fatias sem semente de melancia e carnudas mexericas se expõem em sua banca modesta, como estrelas de cinema. E embora tenha todo esse glamour, as rodelas de abacaxi são espetadas com dois ou três palitos de dente. E o caldo escorre pela boca, pela mão, açucarando a pele. Do outro lado do balcão, o vendedor faz tudo com a cara séria. É de poucos sorrisos. Talvez a vida não lhe seja fácil. Talvez tenha que se concentrar para não errar na dose. Talvez não goste de abacaxi.
Seja como for, de segunda a sexta-feira ele está lá, regendo os sabores de uma gente que passa e nem se dá conta do que está ao seu redor. A falta de tempo vai puxando, tragando, empurrando josés e marias que pouco se importam se o abacaxi está ou não no ponto. Para eles, que aprenderam a virar as costas para a poesia, a vida só adquiri sabor com um prêmio de loteria. Essas pequenas coisas não mudam em nada o gosto de suas vidas não vividas, azedas como uma rodela de abacaxi que não existe ali. Ao menos, não na banca daquele homem que sabe das coisas.
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