O Gosto de uma época
Um vento forte e sem direção. Acordo numa espécie de transe. A vista confusa. O corpo meio zonzo. Caminho. Os meus passos seguem outros passos. Não sei se são passos desgarrados, se são passos guardados, eu só sei que são passos passados. Não me pergunte qual é ou era o mundo. Só sei que, está ali diante dos meus olhos. Os rastos ora mais fortes, ora mais fracos rabiscam a estrada. E lá vão os passos, e lá vai um tempo, e lá vou eu.
Por hora, caminho ao som de uma música. Não sei de onde vem, mas conforme caminho, ela, a música, fica mais próxima. É a minha única guia. Não vejo o cantor, mas deve estar usando colares, paletó de veludo e calça-boca-de-sino. A vida, como uma amante, remexe os seus calendários como quem remexe os guardados das gavetas.
Não encontro porta-retratos pela estrada, mas as fotografias surgem como delírios. Como se uma febre me trouxesse imagens, cheiros, sons, texturas, marcas. Os passos aumentam e as fotografias perdem a cor. De repente, o mundo em minha volta fica preto e branco. É como se eu lembrasse momentos que, por alguma espécie de mágica, fazem parte de mim. Momentos que o tempo não me deixa esquecer. O tempo.
Tempo dos namoros nas praças. Tempo em que as praças tinham um quê de Ronie Von. Tempo das trocas de gibi na porta do cinema. Tempo das baladas românticas. Tempo do yê, yê, yê. Tempo de Help, Yesterday. Tempo dos Beatles. Tempo da Festa de Arromba. Tempo da Jovem Guarda. Tempo de Wanderléia, Erasmo, Wanderley Cardoso. Tempo dos carrões. Tempo das minissaias. Tempo de jogar bola num campinho perto de casa. Tempo em que haviam campinhos perto de casa. Tempo de longos cabelos. Tempo de longos abraços. Tempo onde as tardes de domingo eram mais jovens. Tempo em que domingo era dia de tomar guaraná. Tempo de alguma maria e alguma quermesse. Tempo de Tarzan, Elvis e daquele bangue-bangue das matinês. Tempo de torcer por um time ou por um cantor na casa de algum vizinho que tivesse TV. Tempo de Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe e de Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis Regina.
O vento continua forte. Caminho e encontro ou reencontro pessoas, coisas, vidas. Algumas, eu conheci pessoalmente. Outras, por meio de histórias. Alguns pés de goiaba, um pedaço de marmelada com queijo, uma casinha, um cachorro... Caminho e um gosto me vêm à boca. Estranho, um gosto que nunca experimentei antes e que aparentemente, nunca me saiu da boca. O gosto de uma época. O gosto da juventude de uma época.
Caminho, mas só posso andar para trás. Posso andar cinqüenta anos para trás e nenhum segundo para frente. À frente, sonhos, esperanças e promessas que se dobram nos segredos do horizonte. Procuro algum espelho na estrada, mas não encontro. Quero ver meus traços. Quero ver se aquele mundo é real. Tenho a impressão de que diante de um espelho, o reflexo não seria o meu. Por mais que aquele mundo me estivesse presente, eu não o vivi. Eu sou apenas uma visita às emoções que não são minhas. Parte de mim é feita dessas visitas.
Caminho e as notas daquela música me levam para um teatro vazio. Aquele lugar, talvez fosse só mais uma história. Ao menos, o vento se aquieta. De repente, as luzes se apagam. As cortinas se abrem. As minhas mãos aplaudem e se juntam a uma multidão de aplausos anônimos. Um palco e um radinho de pilha. A solidão e o mundo de um palco e um radinho de pilha. Diante dos meus olhos, uma vida passa pelo palco ao som de um radinho que toca Roberto Carlos.
Observação do autor: Texto escrito para o aniversário de 50 anos do pai de Daniel Campos (Antonio Carlos Ratz de Campos), no dia 03 de novembro de 2002.
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