26/10/2008 - O crime do padre
Com olheiras roxas, dignas de um vampiro de ressaca, ele foi para a cama. Mas não conseguiria dormir. As últimas noites foram tomadas pelo misterioso assassinato do padre Felício. Rolava de um lado para o outro, mas a cena do pároco morto, aos pés do altar, não lhe deixava a cabeça. O fato de ser devoto de São Jorge, o santo guerreiro patrono daquela igreja, intrigava-o ainda mais. Quem teria cometido o crime e por qual razão? Triplicou o seu consumo de cigarro e passou a roer unhas. Um homem formado daquele roendo unhas? Delegado há 28 anos, poucas coisas mexeram tanto com ele quanto essa tragédia.
Está certo que em Caminhos de Vento, a pequena cidade ao pé da serra em que trabalhava, não acontecia tantos casos como esse. O resultado da perícia demorava demais a chegar da capital. Para aumentar a aflição, ninguém havia se entregado. A lista de suspeitas era imensa, mas sem muita sustância. Como de praxe, colheu o depoimento de todos os que estiveram na cena do crime. E foram muitos os que entraram na igreja naquele sábado. Praticamente, uma cidade inteira. E as beatas mais velhas não se conformavam em serem suspeitas da morte do tal padre. Havia quem chorasse, quem falasse mal, quem ameaçasse, quem jurasse, quem se calasse e quem desafiasse o delegado, não comparecendo ao depoimento.
Padre Felício tinha um semblante fechado, daqueles que impõe respeito, mas tinha um coração de manteiga. Adorava almoçar uma boa galinha caipira na casa de um de seus fiéis e ouvir moda de viola. O pecado da gula não parecia lhe fazer medo. Quando não estava na igreja ou na mesa de refeição de alguma casa da vila, o padre estava na rede, que ficava dependurada na varanda da casa paroquial. E não faltava a conversa de uma beata ou um violeiro que fosse lhe fazer companhia. Não era de se envolver nos assuntos da prefeitura, tampouco no da delegacia. Era padre e pronto. Daqueles que andam de batina negra pela cidade, dando benção ao povo que vinha beijar sua mão.
Exceto para prosear com o delegado, o padre nunca havia requerido os serviços da delegacia. Ou melhor, apenas uma vez que pediu que um policial fizesse a escolta do bispo que viria visitar a cidade. Mas isso já faz mais de dez anos. Então, o que justificava aquele corpo caído ao pé do altar. Da igreja, não foi roubado nada. Nem mesmo o cofrinho que recebia a caridade dos fiéis tinha qualquer sinal de arrombamento. Imagem alguma foi depredada. São Jorge continuava firme lá no altar. Mesmo com toda essa calmaria, o sangue escorria pela face do padre, chegando a manchar o piso do altar, alimentando uma cidade que parou para enterrar aquele representante de Deus.
No velório, muito concorrido, um sentimento de indignação se juntou às lágrimas. E isso só fez aumentar o desespero do delegado. Seu José chegou a colocar o dedo na cara da autoridade policial exigindo que desse um jeito rápido nessa história. Dona Carmela pediu que o delegado achasse o culpado nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. Dona Geralda, chorando inconsolada, segurou na lapela do delegado e ficou gritando justiça, justiça, justiça. Seu Inácio, o mais exaltado deles, chegou ao velório com uma espingarda querendo dar um fim no matador de padre. E além dessas confusões, teve cantoria de viola e uma pinguinha para beber o defunto.
O problema estava mais sério do que se podia prever. Na missa de sétimo dia do padre, que foi realizada por um frei da cidade vizinha, os fieis voltaram a cercar o delegado. Por culpa do ocorrido, a igreja estava fechada. Não tinha missa. Não tinha comunhão. Não tinha confissão. A comunidade estava inconformada. O delegado pensou em nem ir à homenagem póstuma, mas além de ser muito amigo da vítima, não podia se deixar intimidar por aqueles que o paravam na rua pedindo satisfações sobre o assunto.
O padre Felício estava à frente daquela paróquia há trinta anos. Ele era, praticamente, parte da cidade, como casas e árvores. Talvez, foi morto por alguma desavença antiga, quando ainda não morava em Caminho do Vento. Mas essa suposta vingança não podia render por mais de trinta anos. Talvez, foi morto porque ouviu demais. Há quem fale demais, mas no caso de um padre, escuta-se demais durante a confissão. Será que alguém, arrependido de ter confessado alguma coisa séria, teria promovido uma queima de arquivo com o religioso? Poderia ter sido algum marido ciumento, já que as beatas não davam sossego ao padre. Mas ele era muito sério para essas coisas de traição, fazia cada discurso de deixar de cabelos em pé os que pulavam a cerca. Talvez, perdeu a fé e se matou. Um padre perder a fé depois de tanto tempo? Mas como explicar para a população que o padre se matou por falta de fé?
Eram muitas as hipóteses, mas faltava um fio nessa meada. Algo que iluminasse suas idéias e levasse ao cabra. E o delegado, que tinha se casado diante do padre Felício, batizado quatorze crianças diante do padre Felício, acompanhado a primeira comunhão do filho realizada pelo padre Felício, chorado durante o momento que padre Felício encomendou o corpo de sua esposa, morta prematuramente vítima de um nó no intestino, estava, como diz o velho ditado, no mato sem cachorro.
Será que foi paulada? Será que foi facada? Será que foi tiro? Será que foi um soco? Será que foi envenenamento? Desde que comadre Sebastiana encontrou o corpo, perto da reza do terço das cinco horas da tarde, até agora, doze dias se passaram e tudo parecia encaminhar para um crime sem solução. O delegado estava prestes a abandonar o posto, quando recebeu uma carta. Era o resultado da perícia. O momento de grande apreensão. Uma multidão, armada com porretes e foices, já se formava nas redondezas do prédio da delegacia para dar um jeito em quem matou o padre.
Quem era o culpado? Na verdade, era culpada. Havia sido uma mulher. E quem foi? Uma galinha. Uma o quê? E qual o nome dessa sem-vergonha? Miudinha. Quem é essa tal de dona Miudinha que a gente nunca ouviu falar por aqui? Na verdade, era a galinha de dona Francisca. O padre havia morrido de congestão, depois de almoçar na casa dessa senhora de 84 anos. Passou mal e ao cair, bateu com a cabeça no degrau do altar provocando todo o sangue. E agora, dona Francisca iria ou não para a cadeia? Pelo visto, as olheiras do delegado iriam continuar...
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