O abismo da vergonha
O abismo é cada vez maior. De um lado os que ficam na piscina com taças de champanhe e de outro, os que catam comida no lixo. De um lado os que nem sabem onde acabam suas fazendas e de outro, os que não tem sequer uma cova rasa. De um lado os que têm direito às leis (às brechas da lei) e de outro, os que não mais acreditam em justiça.
Quando os olhos chegam perto do abismo, o medo faz com que se volte para trás. Ficar pasmado não leva para lugar algum. O abismo que parece infinito não é recente. Às vezes, pode ter outro nome. Pode ser um muro (Berlim), uma fronteira (EUA x México), um embarco, acima de tudo econômico, (Cuba, Iraque), uma indústria da seca (Brasil)...
Pular o abismo é quase impossível. A maioria se perde naquele buraco sem fim. A solução seria construir uma ponte com algo em comum entre os dois lados, a ?qualidade? de cidadão. Devido à Constituição, aos direitos humanos, nascemos com direito à cidadania.
A palavra cidadania não fica restrita aos dicionários. Falam em cidadania nos movimentos sociais que, isolados e fragmentados, enfraquecem a cada passo. Falam em cidadania em época de eleições. Falam em cidadania em discursos quando se quer aplausos. Mas hoje, entre tantas falas, a expressão perdeu o sentido e virou mais um produto, dentre os tantos vendidos pelos politiqueiros.
Engana-se quem crê na cidadania como igualdade. Deve-se lutar, sobretudo, pelo respeito à diferença. A vida é regida por conceitos universais, mas vive-se de maneira própria. Alcança-se a cidadania quando a qualidade de vida é plausível às necessidades básicas de qualquer um, sem distinções. A igualdade é um discurso autoritário. O que dizer dos arianos de Hitler?
O problema do abismo é político, é econômico, é social. O comunismo enquanto sonho era a política perfeita. O papel do Estado passaria aos cidadãos. Mas, quando as idéias passaram para o plano da realidade, surgiram os interesses que não eram de um todo. Por isso, o fracasso.
Ao remeter ao conceito de ?todo?, cidadania nos lembra democracia. Mas vivemos uma democracia ou não? Em específico no Brasil, vivemos uma democracia que privilegia alguns. Alguns. Senão, como explicar a nossa péssima distribuição de renda, a nossa corrupção, a nossa impunidade? Que na verdade não é nossa e sim de um governo que, se possível, privatizaria os próprios cidadãos (se é que ainda não nos privatizou).
De fato, o abismo aumenta. A separação não é só em relação ao poder. Nós mesmos nos isolamos de quem está ao nosso lado. O nosso sistema econômico, o capitalismo, nos leva a duas coisas: ao consumismo e ao individualismo. A primeira o alimenta, o faz crescer, ou melhor, alimenta a elite (aqueles que estão longe do abismo). A segunda impede a nossa união em torno de uma luta única. Uma armadilha que é fácil de cair e difícil de sair.
Os cidadãos, descrentes, tiram de si o papel que lhes cabe. Continuam na luta desenfreada pela sobrevivência. Buscam o consumo e temem os que estão ao seu lado. É preciso uma reforma no pensamento da população. A elite (não se esqueça que a grande mídia faz parte da elite) transforma as lutas sociais em uma espécie de terrorismo. Fazem os cidadãos se voltarem contra eles próprios. Um exemplo: fazem do MST um verdadeiro bicho-papão. Engraçado, o bicho-papão não deveria ser a bancada ruralista que se espalha pelo Congresso?
A mídia nos cala, nos deixa passivos. Ninguém consegue mudar o mundo sem antes mudar as próprias atitudes. Para vencer o abismo maior, devemos vencer primeiro o abismo que criamos em torno de nós próprios. Abismos em relação à cor, ao sexo, à condição social...
Se não nos dermos as mãos, o destino será o abismo. O abismo que atende pelo nome de exclusão social. Há cada vez mais excluídos. Excluídos de casa, comida, segurança, prazer, educação, saúde, direitos, trabalho, esperança. Excluídos do princípio de serem humanos.
Impossível falar em cidadania, em luta, em respeito, sem lembrar Herbert de Souza, o Betinho. E que em sua memória não façamos um minuto de silêncio, porém uma infinidade de minutos de luta. A luta que ganhou os traços do sociólogo mineiro. Que a cidadania não seja, somente, uma bandeira política, uma palavra bonita. Que seja uma luta que, embora difícil, renda-nos prazer. Como em uma poesia de Fernando Pessoa, é melhor ser o pó da estrada que os pés dos pobres pisam do que atravessar a vida olhando para trás e tendo pena de sim mesmo.
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