Nenhum motivo explica a guerra
Como protagonista de mais uma tragédia cotidiana, Evandro João da Silva gritou por socorro e recebeu um tiro na barriga. Caído no centro da mesma cidade que receberá um dos maiores símbolos da paz entre os povos – as Olimpíadas, Evandro sentiu na carne o destino de muitos jovens. Perdeu o tênis, a jaqueta, a carteira... Perdeu a vida. Gritou por socorro, mas foi silenciado. Silenciado pela violência que buscou combater na coordenação social do Afroreggae, que tem um dos trabalhos sociais mais bonitos desenvolvidos neste País que grita por socorro assim como gritou Evandro. Grita contra a fome, contra a insegurança, contra o descaso.
Foi difícil acreditar que o mesmo homem que desenvolvia trabalhos sociais em comunidades carentes e presídios, que transformava desigualdade em música, que me levou para falar de Renda Mínima em uma das maiores favelas da América Latina,..., havia se tornado, num piscar de olhos, mais uma vítima, mais um índice, mais um motivo de choro e indignação. Ele que salvou tantas vidas não conseguiu salvar a sua. Aquele tiro não lhe deu a oportunidade de terminar a faculdade de pedagogia, tampouco de começar o mestrado que tanto sonhava ou de continuar colaborando com os mais de 65 projetos do grupo cultural.
Evandro gritou e seu grito ecoou pelas favelas e pelos presídios deixando um sentimento de “vazio” naqueles que enxergavam nele a personificação da esperança. Esperança de uma vida nova, com mais oportunidades e respeito. Atendendo a um desses gritos contra a injustiça social, contra o preconceito, contra a miséria, eu atendi seu pedido e expliquei o “Renda Mínima” aos moradores do Complexo do Alemão. Evandro foi responsável pelo convite e pela organização do evento.
A comunidade participou, eu me emocionei e Evandro se empolgou ainda mais diante daquele mundo tão melhor quão possível. Depois da palestra, muita gente entendeu que o Brasil pertencia a todos e que tinha tudo para ser um País de muitos. Embora tivesse somente 42 anos e fosse um entusiasta do “Renda Mínima”, aquele tiro disparado na esquina das ruas do Ouvidor e do Carmo fez com que ele não testemunhasse a completa efetivação desse programa que leva à paz social. Um programa que tem tudo para mudar o refrão de uma música da banda Afroreggae que, ironicamente, ilustra a morte de Evandro:
“Não agüento mais
são iguais sobrepondo
são iguais sobrepondo
são iguais sobrepondo os iguais”
Trecho da letra “São iguais sobrepondo os iguais” (Afroreggae)
Evandro gritou, mas as câmeras de segurança de prédios do centro do Rio de Janeiro não gravaram seus gritos. Gravaram Policiais Militares que ao passar pelo local não lhe prestaram socorro. Como “são iguais sobrepondo os iguais”, os policiais não só ignoraram os gritos de Evandro, como liberaram um dos bandidos que haviam detido. Além disso, eles se apoderaram de seu tênis e de sua jaqueta. Caído ao chão, Evandro era só um homem comum, sem títulos ou medalhas, ao contrário de um dos policiais que tinha a patente de Capitão. Para que ouvir os seus gritos?
Que a morte de Evandro seja uma oportunidade de tratar a violência não como uma questão individual, mas como uma questão inserida na trama social. Que o modelo de civilização excludente seja discutido e, enfim, superado. Uma sociedade excludente, que não se compromete com todos, pressupõe a existência da violência. Por isso, a chave deste problema esta no modelo de civilização que tem tudo para ser aprimorado com a concretização do “Renda Mínima”, que beneficiará todos os brasileiros, sem distinção, inclusive aqueles que estão abaixo da linha da pobreza.
Há muitos anos eu trabalho para que o “Renda Mínima” seja uma importante ferramenta para se construir a paz, a justiça e a liberdade social, contribuindo para a formação de uma geração mais justa e livre de cenas como essa que calaram Evandro. Ele gritou pedindo socorro. Pediu socorro para aqueles que, com sua morte, ficaram desamparados. Ele que dedicou sua vida a oferecer uma formação cultural e artística para que jovens moradores de favelas tivessem meios de alcançar suas cidadanias e escapar do caminho da violência foi calado. Calado à força.
Que, por ele, aflorem, em tantos jovens, os sonhos que ele semeou buscando uma nova civilização. Que, por ele, o reggae tenha ainda mais força de transformação social e cultural. Que, por ele, o “Renda Mínima” renda cada vez mais frutos. Que, por ele, mais e mais brasileiros cantem um dos sucessos da banda Afroreggae, fazendo com que a poesia da letra ganhe raízes na sociedade de modo que os ideais de Evandro não se calem jamais:
“Nenhum motivo explica a guerra
Nem a grana
Nem a ganância
Nem a vingança, nem avanço industrial
Nem esperança, nem o ideal
Nem em nome do bem, contra o mal
Nenhum motivo explica a guerra”...
Trecho da Letra “Nenhum motivo explica a guerra” (Afroreggae)
Observação do autor: Discurso proferido na tribuna do Senado, em 22/10/2009, pelo senador Eduardo Suplicy
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