Não dá mais para segurar
Ele tinha tudo para se calar. Ele tinha tudo para não dar certo. Ele tinha tudo para ser mais um. Entretanto, venceu. Venceu e ultrapassou os limites da vida. Aliás, foi maior que ela. Tudo começou em 1945, no morro de São Carlos, Estácio de Sá. Nem é preciso dizer que estamos no Rio de Janeiro. Tempos de Getúlio Vargas. A única lembrança da mãe era uma foto amarelada e o medo de morrer tuberculoso como ela. Do pai, conhecia solidão, o abandono, a pobreza do carinho e o nome na certidão de nascimento. Cresceu com dois pais de criação. O menino foi tomando o universo da favela para dentro de si. Menino que soltava pipa e, carregava sacolas nas feiras e, no carnaval, escapulia para a avenida. A música lhe chegara com a forma de samba.
Cresceu entre a música e a malandragem das ruas. Era um quê de sensibilidade e consciência político-social. Falava da vida como ninguém. A vida, a emoção, a raça. A música aos poucos saía dos palcos da faculdade e ia ao encontro do povo.
A carência afetiva, a infância pobre, a ditadura militar... Todos esses elementos, combinados ou não, poderiam calar, moldar, domar qualquer pessoa. Mas não... Ele sabia atacar e agüentar as conseqüências. Como tantos, sofria. No entanto, em algum momento, de alguma forma, tinha que extravasar todo esse sentimento que se amarrotava dentro do peito. Momento esse em que não dá mais para segurar, esconder, disfarçar... Explode coração.
O moleque passou grande parte da vida tentando se encontrar. Os fantasmas da inferioridade o atormentavam. A infância lhe depositou traumas inegáveis, a ponto de deixar a barba crescer só para tentar amenizar a imagem do rosto magro. Quando cantava, com o coração na boca, o peito aberto, entregava-se. Cantava como se sangrasse por dentro.
Quando se achou, mais tarde, a sua poesia ganhou um romantismo que até então não era demonstrado nas canções ácidas, amargas, cítricas. Precisava cantar, cantar, cantar. Com a boca fechada, certamente aquele coração explodiria. O talento não podia se calar e o talento daquele menino de São Carlos era a arte em sua força máxima. Uma arte que pode ser admirada em sua beleza e ainda exerce enorme função social. A arte que queria mudar o mundo.
O que o calou não foi a pobreza, não foi a ditadura, não foram os tantos fantasmas que carregava consigo. Morreu num acidente de carro. Morreu ao volante. Morreu? Não... Apenas deixou de compor. Ele ficou nas letras, nos acordes, na vontade de mudar, de viver o que é amar. Ficou dentro de cada um, num sonho de uma realidade menos hipócrita, mais justa, mais humana. Um mundo onde a vida humana fosse motivo de respeito e orgulho.
Dez anos depois de sua morte, ele, em toda luta e sabor, ainda vive. É como se por um determinado tempo passasse adormecido, depois despertasse. Despertasse no desejo de mudar, de lutar contra as injustiças, de ser o canto da sociedade. Despertasse dentro de nós. Ele deixou marcas. Ao ouvi-lo, aquela voz angustiada vai rasgando, tragando, dando um nó no coração. E nessas horas, é preciso ser forte. Forte para agüentar todos os sentimentos até o ponto de extravasá-los. E então, não ter vergonha das lágrimas. Não ter vergonha de ser o que se é.
De fato, viver Gonzaguinha é algo que dá prazer, alívio e angústia. Ele plantou tantos sonhos e, dez anos depois, a vida não é melhor do que aquela que o menino via passar no alto do morro de São Carlos. Pudera, enquanto tivermos vergonha de explodir os nossos corações, seremos apenas mais um. Apenas, mais um.
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