16/03/2010 - Morreu o professor
Morreu quem me ensinou a viver intensamente o amor pelas coisas da vida. Morreu quem me ensinou que tudo é feito de terra. Morreu quem me ensinou a honrar a palavra dada acima de qualquer coisa. Morreu quem me ensinou o sentido de infinito. Morreu quem me ensinou a lutar e lutar muito. Morreu quem me ensinou a lidar com enxadas, serrotes, cavadeiras, foices, pulverizadores, debulhadores, plantadeiras... Morreu quem me ensinou que o melhor não é ver a obra finalizada, mas aproveitar cada momento do processo de construção. Morreu quem me ensinou a sonhar de olhos abertos.
Morreu quem me ensinou a descascar laranja, a subir em árvore, a fazer cerca de arame farpado. Morreu quem me ensinou que distância se mede com passadas. Morreu quem me ensinou a pilotar um trator. Morreu quem me ensinou a beber uísque. Morreu quem me ensinou a tocar boiada. Morreu quem me ensinou a passar uma noite inteira velando nossos mortos. Morreu quem me ensinou lendas e caminhos. Morreu quem me ensinou a plantar e podar árvores. Morreu quem me ensinou a fazer fogueiras de São João.
Morreu quem me ensinou dar nó em gravata e carregar sempre dois lenços no bolso, um para o cavalheiro e outro para a dama. Morreu quem me ensinou o vocabulário da roça. Morreu quem me ensinou que com algumas quartas de terra é possível fazer um paraíso. Morreu quem me ensinou a cuidar das criações. Morreu quem me ensinou a ler o céu, a lua, o sol... Morreu quem me ensinou a acreditar sempre, por mais impossível e improvável que seja nosso desejo. Morreu quem me ensinou a ser forte.
Morreu quem me ensinou que existe outro mundo, mais mágico e poético, bem debaixo de nossos narizes. Morreu quem me ensinou a adubar, a irrigar, a pulverizar a plantação. Morreu quem me ensinou a mexer e a remexer a terra. Morreu quem me ensinou que qualquer pedacinho de chão pode se transformar num salão de baile. Morreu quem me ensinou a molhar o pão no caldo da salada. Morreu quem me ensinou uma fé que não se aprende na igreja. Morreu quem me ensinou a sentir o gosto das coisas a fundo.
Morreu quem me ensinou o dia-a-dia dos sacis, das mulas-sem-cabeça, dos boitatás. Morreu quem me ensinou a não ter medo das assombrações. Morreu quem me ensinou a não ter medo. Morreu quem me ensinou a dobrar as abas do chapéu de palha. Morreu quem me ensinou a falar a língua dos bichos. Morreu quem me ensinou que o colarinho da camisa de um homem deve estar sempre impecável. Morreu quem me ensinou a destrinchar um boi. Morreu quem me ensinou a passar pelo mundo de cabeça erguida.
Morreu quem me ensinou a curar gripe com ovo cru. Morreu quem me ensinou a escutar o vento. Morreu quem me ensinou que o melhor remédio está no mato. Morreu quem me ensinou a contar histórias. Morreu quem me ensinou a entender o tempo. Morreu quem me ensinou que homem também chora. Morreu quem me ensinou os cheiros e os sabores do campo. Morreu quem me ensinou a pintar casa, a fazer concreto, a salitrar ruas de milho, a vacinar cachorro, a conversar sozinho, a seguir o rumo das águas...
Morreu quem me ensinou a ser mil homens em um só homem. Morreu quem me ensinou que é preciso ter a mão áspera e o coração tenro. Morreu quem me ensinou a estudar mesmo não tendo sequer terminado o terceiro ano primário. Morreu quem me ensinou a criar asas. Morreu Liberato de Lima Barbosa, pai, avô, amigo, herói, lenda... Professor.
Observação do autor: Tributo a Liberato de Lima Barbosa, avô deste poeta, morto na noite de 15 de março de 2010. Em sua homenagem, os textos do dia desta semana serão, mais do que nunca, inspirados em suas histórias...
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