Daniel Campos

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27/06/2008 - Morreu dona Ruti

Morreu dona Ruti. Não, caro(a) leitor(a), não falo da dona Ruth, mas da dona Ruti, com "i" mesmo no final. Assim como a ex-moradora do Palácio da Alvorada, a nossa personagem, lá da periferia paulista, morreu do coração essa semana. Mas, ao contrário da sua xará, morreu na fila do hospital público. Não tinha médico nem leito para socorrê-la. O filho havia se envolvido com droga há alguns anos e sido morto por traficantes. O marido, seu Ferdinando, assim como Fernando Henrique, estava fora na hora fatal. De certa forma, fazendo política. Afinal, tinha que convencer o seu Joca, dono da casinha onde moravam, a arrastar o aluguel por mais alguns dias. Sendo assim, dona Ruti morreu sozinha ao lado de outros tantos anônimos, doentes e abandonados como ela.

Longe dos holofotes, seu defunto pode esfriar em paz. Sua morte não foi manchete na televisão ou capa de jornal. Nenhum presidente, governador, prefeito decretou luto de três dias, tampouco deu declarações de pesar. Também não teve telefonema de rei, de ex-presidente ou de senadora dos Estados Unidos para consolar o viúvo, seu Ferdinando, que chegou abalado, trançando as pernas de bêbado no velório da mulher. Nenhum deputado fez discursos emocionados em sua memória e bandeira alguma cobriu seu caixão. E olha que isso fez falta já que a madeira era fajuta que só. Seu corpo não recebeu coroa de flores ou autoridades em seu velório. A pessoa mais importante que apareceu por lá foi um aspirante a padre, que passou correndo para encomendar o corpo.

Pudera, dona Ruti nunca foi doutora de nada ou sequer primeira-dama. O posto mais alto que alcançou foi quando desfilou como segunda-porta bandeira de uma escola de samba da terceira divisão do carnaval. Porém, conhecia a Faculdade de Filosofia da USP como ninguém. Aluna? Professora? Não! A resposta correta é faxineira da universidade. E olha que foram mais de dez anos varrendo, lavando, limpando... Talvez as duas cruzaram naqueles corredores onde tanto trabalharam. Se conversaram ou não, algum dia, ninguém vai saber. Com o passar do tempo, dona Ruth alçou vôos mais altos e dona Ruti teve que deixar o serviço em razão de uma arritmia grave. No entanto, ajudava na creche lá da sua rua. Era forte e combativa e, a sua maneira, lutava por um país mais cidadão, mais solidário, mais justo.

Embora não fosse da República, seu Ferdinando, nas horas vagas, era presidente da associação recreativa dos jogadores de palito do bar do Neco. Mais do que pela atuação, ficou conhecido por mudar as regras do processo eleitoral e se reeleger por oito anos seguidos. Mas isso era na parte da noite, durante o dia pegava pesado como auxiliar de mestre-de-obra. Mesmo na informalidade, a cada nova fiada de tijolos, ajudava a construir um novo Brasil. Mesmo assim, dona Ruti foi enterrada sob os olhos de meia dúzia de gatos pingados em completo silêncio. Que pena que no "país de todos" as cornetas da Cavalaria sejam soadas para poucos.


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