20/10/2013 - Meus quatro caveleiros
Desde sempre, toda noite, antes de dormir, rezava pelos meus quatro avós. Rezava para que nada de ruim acontecesse com eles. Rezava agradecendo por tê-los perto de mim. Rezava para que eles continuassem vivos. Liberato e Adélia e, Antônio e Ofélia, foram durante minha infância, juventude e início da fase adulta meus quatro cavaleiros. Aqueles que estavam sempre comigo. Cada qual com seu jeito, com suas características e particularidades, me ensinaram, me forjaram, me amaram. Quatro caminhos que se cruzaram, de formas distintas e bonitas, no meu caminhar.
De repente, foi como se deus não tivesse escutado a oração da noite anterior. A notícia de que vô Antônio não voltaria mais do hospital foi um choque que demorei dias para me recuperar. Tanto que nem o corpo dele no caixão nem as coroas de flores com seu nome nem o cortejo de taxistas me fizeram entender que ele tinha, de fato, morrido. Eu não me lembro de ter chorado em seu velório. Havia chorado muito nos dias anteriores a sua morte quando ele estava internado e dias depois, quando eu entrava na sua casa e não o encontrava. Durante a noite, ainda incluía seu nome nas minhas orações, mas algo tinha se quebrado.
Eu sempre achei que meus avôs eram imortais, que eu morreria e eles ficariam. Não me preparei para perder nenhum deles. Fui compreender que meu avô Antônio havia morrido, de fato, quando passei a não encontrá-lo mais sentado em sua cadeira no canto da sala, no lugar da mesa da sala de jantar, às voltas com seus causos e piadas. E foi uma falta que me virou pelo avesso. O primeiro dos quatro havia partido. E eu percebi que minhas rezas não valiam de nada para impedir que eles se fossem de mim. Então, antes que mais alguém partisse, resolvi partir.
Mudei de cidade, mudei de hábitos, mudei de religião... porém, jamais mudei o jeito de ver meus avós. Mesmo longe, eu buscava notícias deles todos os dias. Continuava pedindo às forças superiores por eles, mas já sabendo que eu não conseguiria impedir que eles abrissem suas asas e voassem para outros céus. Porém, longe, seria menos dolorido do que, de uma horar para outra, entrar na cozinha de Dona Adélia numa noite de quinta-feira e correr o risco de não vê-la mexendo sua famosa polenta. Seria menos dolorido do que abrir a porteira do sítio Boa Vista e não encontrar meu avô Liberato criando e recriando aquele mundo tão seu, tão nosso. Seria menos dolorido do que numa tarde de quarta-feira ir à Matriz de São José, na novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e não ver minha avó Ofélia na terceira fileira de bancos da direita.
Somente deixei minha casa para cumprir meu destino depois que tive a certeza de que meus avós eram mortais, depois que descobri que eu não os conseguiria manter vivos, depois que eu tive a certeza de que eles já estavam, para sempre, dentro de mim. E de dentro de mim câncer ou falência generalizada de órgãos ou parada respiratória alguma conseguiriam levá-los, matá-los, enterrá-los. Anos e anos depois, descobri que deus não havia ignorado minhas preces, afinal meus avós que partiram seguem comigo. Converso com eles. Rio e choro com eles. Faço de acordo com que me ensinaram. Eles me habitam e pulsam em mim, como se nunca tivessem ido para lugar algum.
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