12/10/2008 - Lá vem Cartola...
A lua corria alta e, da varanda, o mundo era um imenso morro com barracos coloridos e meninos empinando maranhões de estrelas. Ah! E como brilhavam aquelas estrelas de papel celofane no céu. E ao cair de um desses maranhões que são levados pela linha de cerol de algum malandro, brinquei num tamborim. Desafinado, animei-me e ensaiei um sambinha naquele couro. E aquela batucada que contava a história das rosas que não falam se misturou às batidas da porta. Já eram duas horas da manhã! Quem me procuraria em tal situação? Será ladrão! Com medo de algum imprevisto, abri a porta e a boca... afinal, ele estava ali, bem na minha frente? Ele quem? Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola.
Vestindo cartola rosa, terno rosa, gravata borboleta rosa e uma camisa verde, ele estava ali. Seu rosto, escondido pelas lentes dos tradicionais óculos negros. Chegou de violão em punho e foi atravessando a casa até à varanda. Quando lá, pediu uma cerveja e começou a falar da vida. Se eu contasse, ninguém acreditaria. Ele estava ali, em carne e osso. Ele que já tinha sido dado como morto uma vez e foi encontrado lavando carros em Ipanema mais de dez anos depois, em razão da morte de seu primeiro amor, aprontara novamente das suas. E no momento que eu lhe perguntei se seu sumiço, assim como o primeiro, tinha se dado por amor, ele cantou:
"Não quero mais
Amar a ninguém
Não fui feliz
O destino não quis
O meu primeiro amor
Morreu como a flor
Ainda em botão
Deixando espinhos
Que dilaceram meu coração"
O poeta do morro estava bem, com seus versos mergulhados na tristeza característica de sua existência, mas bem. No entanto, entre um gole de cerveja e outro, perdia sua tristeza pelas luzes mornas das estrelas e sorria incandescentemente. Contava-me os bastidores, as histórias extra-oficiais, as lendas do morro que nunca desceram à cidade. Foi um dos sambistas que mais cantou a tristeza, que tinha a fina flor do pessimismo em suas estrofes, no entanto, havia se rendido ao sorriso. E o que será que aconteceu? Segundo ele,
"A sorrir
Eu pretendo levar a vida,
Pois chorando
Eu vi a mocidade perdida"
Contou-me que encontrou Carlos Cachaça dia desses, que dona Zica convidou Nelson Cavaquinho para uma feijoada e apareceu até Jamelão. Porém, queria saber como estavam Chico Buarque, Paulinho da Viola, Beth Carvalho e outros bambas que ficaram por aqui. Perguntei se ele não tinha saudade da Mangueira, se não andava por lá... mais uma vez a resposta veio pelas cordas do violão:
"É com tristeza que relembro
Coisas remotas que não vêm mais
Uma escola na Praça Onze
Testemunha ocular
E, perto dela uma balança
Onde os malandros iam sambar"
- Tempos idos, Cartola! Depois de tanto tempo você não se surpreende até onde Mangueira chegou?
"Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?"
- Muito do romantismo acabou, não é Cartola? Hoje, o que se vê são desfiles financiados muita grana, personalidades tirando o destaque da comunidade, o enredo engessado em temas que não condizem com a realidade do sambista, a fantasia sendo comercializada como um prato de arroz com feijão...
Cartola, pela primeira e única vez naquela madrugada, retira os óculos e murmura ao violão:
"Fita os meus olhos
Vê como eles falam
Vê como reparam o seu proceder
Não é preciso dizer, deve compreender
Até mesmo notar só no meu olhar"
E, o olhar, tinha uma certa decepção, a certeza de que algo saiu dos trilhos...
- Mas ainda há os foliões, essa gente sofrida que ainda acredita na ilusão cantada no samba. Esse povo ainda ama, ainda chora, ainda se desespera com a escola... O que você tem a dizer a esses foliões que vivem de carnaval...
"O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a p"
- A realidade tem lá suas amarguras, mas não vamos deixar a alegria cair. Conta aí, em primeira-mão, por que a escolha do verde e rosa? São tantas histórias sobre isso, tem gente que fala que é por causa de uma rosa que você encontrou pelo caminho ou por sua paixão pelo fluminense...
"São verdes, os campos, as matas
E o corpo das mulatas quando vestem Verde e rosa, é Mangueira
É verde o mar que me banha a vida inteira"
- Agora, com cem anos de existência, você veio para ficar? Quem sabe compor novos sambas, presidir a Mangueira, gravar um disco com a velha-guarda, inventar um novo jeito de viver e fazer o carnaval... Você não vai embora, ou vai?
"Ai, seu eu tivesse autonomia
Se eu pudesse gritaria
Não vou não quero
Escravizaram assim um pobre coração
É necessário a nova Abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade"
- Neste caso, você quer que eu leve um recado seu lá para Mangueira?
"Mangueira
Guerreei na juventude
Fiz por você o que pude,
Mangueira
Continuam nossas lutas,
Podam-se os galhos, colhem-se as frutas"
O violão se cala. Cartola se levanta e vai pelo ar feito um daqueles maranhões de estrela que flutuavam pelo céu. Aliás, era um desfile estrelado. E antes que ele fosse por completo, gritei como faria para encontrá-lo novamente?
Ele virou-se e com um riso no canto da boca, disse:
- Pergunte às rosas?
Sem pensar na profundidade de sua frase, respondi:
- Mas as rosas não falam?
De fato, não precisava de resposta. Eis a beleza daquela poesia cartoliana. As rosas falam ou não falam, eis a questão? É claro que falam... Em uma outra língua, mas falam. Cartola subiu para o alto do morro e a noite ficou fria, vazia, arredia. No entanto, em feitio de trovão, ao fundo dos céus de maranhão, um surdo marcava a batida de um coração verde e rosa.
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