Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Identidade secreta

Em um desenho futurista, três grandes argolas de ouro se entrelaçam em cada orelha. Designer norte-americano e filosofia oriental, lado a lado. Mas isso não é o mais importante para aquela mulher que gostava de esbanjar. Fosse por meio dos acessórios de shopping center, do carro de sangue alemão ou das fotos da última viagem transatlântica, ela, propositalmente, deixa-se à mostra. Não fazia por mal, mas gostava de chamar os holofotes para si.

As mulheres a odiavam. Amigas? Uma ou duas, no máximo. Os homens? Cafajestes e românticos, modistas e socialistas, figurões e plebeus eram unânimes no amor e no ódio que nutriam por ela. Amavam-na à primeira vista e a odiavam nas demais. Vivia com roupas de academia, o que a deixava ainda mais provocante. Vivia para o seu corpo e, nas horas vagas, passeava por lentes objetivas. Era modelo fotográfica. Outdoor, capas de revistas, interface de sites... Seu rosto de menina que cresceu comendo iogurte sempre aparecia ao lado de algum produto. Era um ótimo chamariz.

Vivia em baladas, bebia feito uma qualquer e mantinha sempre um meio sorriso no rosto. Nem sorria por inteiro nem deixava de sorrir. Era um sorriso plástico, quase de nascença. Uma espécie de monalisa contemporânea. Bela, enigmática, perfeita, mas com a imagem desgasta por tantas reproduções. E cercada pela mistura de amor e ódio das multidões, sentia-se sozinha. Tinha uma necessidade de falar da sua vida. Afinal, entre tantos suflês de camarão e kiwis, ela tinha vontade de comer carne-moída. Entre tantos hip hops e tecnos, tinha vontade de dançar agarradinho. Entre tantos cremes e pós, tinha vontade de sair de havaianas.

Mas se ela se ela optasse por um outro caminho, perderia os olhares de amor e de raiva. Quebraria um mito. E ela temia perder o encanto. Para o seu grande espanto, ela acabou se transformando numa personagem de si própria. Uma mulher dentro de outra mulher. Seus olhos ardósia, seus cabelos multicoloridos, seu manequim 38 e sua alma primitiva que se sufocava, asfixiava-se e se afogava naquele corpo que, na verdade, era seu cárcere particular.

Habitante de um mundo camaleão, não conseguia ser natural. De certa forma, já era bonita e isso lhe era um fardo. Afinal, tinha que carregar a beleza em todas as ocasiões, fosse num espaço ou numa relação. Ninguém, fora aquelas duas amigas, sabia o que ela pensava. Todos só sabiam o seu corpo. Era um pedaço de carne de primeira desfilando pela gula de tantos pecadores famintos. Por isso, tinha dias em que ela queria ter espinhas, unha encravada, estrias. Talvez se ela tivesse celulite sua vida fosse mais leve e ela pudesse ser mais ela.

O medo maior é que quando envelhecesse, daqui a uns 20 anos, fosse tarde demais para nascer alguém daquela menina. E a sua identidade poderia ser o passado descartado, uma foto, uma mulher que passou e, pior, não deixou saudades.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar