I like chopin
Sob o efeito de um meteoro, as árvores ficaram de lado e nem se atreveram, por medo ou vergonha, a jogarem suas sementes na clareira. Medo de um outro terremoto. Vergonha de serem expulsas por um pedaço de pedra. Sementes de conquista. Conquista de espaço e de tempo, sementes que alastravam clones daquelas árvores e sementes que faziam com que aquelas árvores se perpetuassem a cada broto.
Durante séculos ninguém pisou ali. Aliás, ninguém ousou pisar ali. Mas ousadia era uma palavra que não faltava no dicionário daquela que era ousada por natureza. E ela, para deixar as árvores boquiabertas, deitou em sua cama de lençol egípcio e amanheceu deitada naquela relva baixa que cobria aquela clareira amaldiçoada. Quando o sol deu vista aos olhos das árvores, elas não acreditaram. Tem alguém na clareira. Tem alguém na clareira. Tem alguém na clareira. Era essa a frase que ecoava pelas galhas das árvores como se fosse e voltasse pelo fio daquele telefone feito com duas latinhas. Telefone que se brinca quando criança. Mas ali parecia não haver nenhuma criança. E nem havia passado, o tempo era presente.
Algumas árvores chegam a despregar suas raízes do solo para dar alguns passos, que mesmo receosos, andam à frente para chegar mais perto daquela mulher. Muitas árvores a dão como morta. Talvez uma oferenda aos deuses. Mas os deuses teriam que esperar mais um pouco para desfrutar daquele corpo ainda adormecido. Os pássaros silenciam. As árvores fofoqueiras silenciam. O sol silencia e as sementes, entre o broto e a seca, decidem esperar mais um pouco.
A mulher se levanta e em seu levante ninguém sabe se seu vestido é negro ou verde. Negro da noite que a gerou ou verde das árvores que a alimentaram com a seiva do espanto. As cores chegam misturadas, casadas, mescladas aos olhos de quem a observa. Seja encarando-a de frente ou de soslaio. Ela acorda espantada procurando seus lençóis como uma cleópatra pós-moderna. As árvores não tiram os olhos do vestido que envolve seu corpo com os mistérios perdidos entre o desejo e o veneno das rainhas egípicias.
Mulher de colo exposto e de cabelos soltos. Quando o murmurinho das árvores começa a crescer novamente, ela rasga os tímpanos das centenárias com um assovio. Um assovio que ricocheteia o ar como uma chibatada. As árvores tremem, as árvores caem, os caules racham e as raízes se encolhem. As árvores tomabm em madeiras de lei quando uma dezena de escravos, com facões afiados e braços fortes, marcha. Escravos que não levam em seus lombos sacas de café ou feixes de cana, mas um piano de cauda.
Sob a ordem da mulher, negros de olhos negros e louros de olhos azuis deixam o piano na clareira e somem como sombras. O vento pára. As nuvens param. O mundo pede silêncio e pára. A mulher leva suas unhas para aquele marfim. As árvores respiram o medo, a ansiedade, a surpresa e todos os outros semi-sentimentos que infestam aquela clareira. Clareira que surge ainda mais bruta no meio daquela mata.
Uma arara azul pousa em um dos galhos de uma cerejeira. Os dedos da mulher vão tatuando as brancas, as pretas e ali, naquele cenário, no meio do nada, no sacrário dos deuses, a mulher declara seu amor à chopin e semeia uma nova vida. Para a sorte ou azar das árvores que ficaram de lado.
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