Helicópteros e gatos vira-latas
Dois helicópteros voando feitos balões de hélio. O barulho das nuvens sendo cortadas, dilaceradas, despedaçadas por aquelas lâminas. Lâminas que depilavam os sonhos de uma mulher que via o mundo passar da janela de um ônibus. Assim como aquelas duas máquinas ovaladas, vestia-se de luto. Vestia a noite em seu próprio corpo. Corpo sem pêlos, sem apelos e com tantos dramas enrolados em feitio de novelos. Novelos prontos para serem tecidos. Mas ao invés dos teares, preferia entregar esses novelos para a brincadeira dos gatos vira-latas. Gatos que apareciam e sumiam de sua casa num piscar de olhos.
Olhos que ficavam olhando aquela mistura de hélix e ptériks. Despindo a língua grega, espiral e asas. Ela sentia suas mãos grudadas naquele manche trêmulo, num vôo instável e breve. Tão breve era a escuridão que, em breve, seria trazida por aqueles mensageiros breves de uma noite breve. Tão perto e tão distante daquele vôo rotativo, não usava batom, não usava brincos, não usava sombras. Mas suas unhas traziam um esmalte vermelho como aquele coração colado num cartão de dia dos namorados que ela nunca ganhou.
O barulho dos helicópteros atrapalhando a música de fundo de um romance pouco convencional. Ela e a paisagem, um romance à parte na tarde em que os olhos, como duas lunetas solares, voltam-se para o céu. Mais do que lunetas, seus olhos eram dois caleidoscópios. Com imagens coloridas se formando e se despedaçando e se formando novamente. E naquele bucolismo, a menina passa por olhos desatentos e deita-se em olhos sonolentos como parte do reflexo da janela do ônibus. Lá fora, o sol arde e ela arde de desejo. E nem mesmo esse ardor lhe tira a palidez do rosto.
Os cabelos indianos se confundem com o negro das vestes e com o negro dos pensamentos. Enquanto o helicóptero se equilibra no céu, aquela menina se equilibra entre os fins civis e militares dos helicópteros. Ora era estrela que caminha sobre o trânsito de helicóptero ora era uma mulher em guerra. Em guerra contra todos e contra si própria. Ou, ao menos, contra os problemas que eram si própria. Problemas? Gatos vira-latas.
Gatos que se anteciparam ao verem o sol escurecendo, como um borrão negro em chamas, e foram para cima dos muros com seus andares infiéis. O que não desconfiavam é que aquilo que viam no céu não era noite, mas um eclipse solar. Eclipse causado pelos helicópteros que voavam acrobatas sobre o comando dos olhos daquela mulher. E, como num pulo de gato, o sol se descobre e desmascara o rosto daqueles felinos que eram feitos de amar e pecar. Em sete vidas, sete mil amores e sete milhões de pecados.
De repente, os helicópteros param em pleno ar amarelado de outono como dois beija-flores. Beija-flores de aço. Beija-flores de espiral. Beija-flores de leis de Newton. Concomitante ao de repente que pára os helicópteros, ela puxa uma cordinha barulhenta parando também o ônibus. Por conta das ilusões ópticas contidas naquela tarde, não se sabe se ela desce do ônibus ou dos helicópteros. As testemunhas daquela tarde desfigurada pelos cortes profundos das hélices dos helicópteros só sabem que ela desceu e seu andar era feito de havaianas e suas mãos, de um esmalte roído pelo nervosismo. Nervosismo de quem dia após dia velava o próprio corpo, que a cada dia ficava tão distante da terra dos gatos vira-latas, assim como aqueles helicópteros de lata.
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