Daniel Campos

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Garça que se esgarça

Na janela, espreguiça com ares de garça. Podia ter vontade de espreguiçar na cama, mas antes de consumir essa vontade, espreguiçava-se na janela. Uma varanda pequena, do 2º piso. Uma varanda minúscula. No máximo, dois metros quadrados que, na verdade, eram dois metros retangulares. Mal dava para caber seu corpo se ali deitasse. Era só para poder dizer que tinha varanda. Fez questão daquele apartamento, que nem era o melhor localizado e o com o melhor preço, mas era o que tinha a varanda perfeita para seus desejos.

Uma varanda onde só cabia ela. Uma varanda privativa. Se mais alguém ousasse entrar ali, tinha de ser bem agarradinho. E como ela gostava daquela varanda apertada. Não tinha varal. Não tinha samambaias. Não tinha cadeiras. Tinha apenas um parapeito feito de tubos de metal e o espaço vazio. Toda manhã ela era acordada pelo despertador. De segunda a segunda, aquele despertador batia às 6h30. Batia, literalmente e fisicamente.

Ela havia comprado um daqueles despertadores de ponteiro, redondinho, com duas conchas de metal viradas para baixo, como se fossem duas bacias do Senado Federal, e, entre elas, uma espécie de martelinho. O som era mais romântico do que um despertador digital. Para o delírio de suas mãos, era um despertador de corda. Nos rompantes da manhã, nas costas do relógio as chaves giravam voltas e mais voltas e o martelinho batia. Com toda a preguiça necessária para deixar a cena mais romântica, ela travava o despertador e, como uma calda de chocolate, escorria pelos lençóis.

Sem olhar no espelho, sem escovar os dentes, sem fazer absolutamente nada, ela, descalça e de baby-doll caminha para a varanda. A cena se repetia em todos os cuidados. A única coisa que mudava era a cor do baby-doll. Doentes se banhavam nos hospitais, mulheres colocavam a água do café para ferver, feirantes chamavam à freguesia, porteiros trocavam de turno, jornaleiros pedalavam e ela tomava os primeiros sinais de sol na varanda. Fazia uma espécie de ioga ocidental. Alongava-se toda. Havia quem já ficasse esperando embaixo do bloco só para ver a meditação da tal mulher. Uma meditação feita de longos olhos turquesa e longas pernas lisas, quimicamente alouradas.

Meia hora depois daqueles movimentos longos e lentos, ela deixa a varanda e volta para os lençóis com ares de satisfação. Como se não tivesse horário para nada, contrai-se toda, como garça triste, e voa em sonhos tão privativos como aquela varanda.


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