Daniel Campos

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Fósseis de verão

Caminhões caçamba se enfileiravam nos desfiladeiros da construção. Ou melhor, da desconstrução. A terra, vermelha, batida, úmida pelo suor do centro da terra ou pela promessa de chuva. Duas escavadeiras espichavam seus braços longos e amarelos e quase se abraçavam. Em uma delas, uma concha. Em outra, uma broca. Ao redor delas, trabalhadores com chapéus alaranjados se movimentavam como formigas. E naquele labirinto de trilhas que rodeava o que ainda restava de concreto armado, caminhava desarmada uma menina.

Podia ser arquiteta ou, dona da obra ou, dos caminhões ou, das escavaderias ou, filha ou mulher dos peões. Quem sabe fosse amante de um daqueles peões e estivesse ali pelo estúpido prazer de ser possuída no meio daquele ferro retorcido. Mas não. Parecia não ser nada daquilo. Ao contrário, parecia não participar daquela desconstrução. Caminhava como se procurasse algo. Um fóssil. Um achado. Mas o que ela procurava estava muito fundo para os braços rosados daquela menina e até para os braços amarelados das escavadeiras poderem alcançar.

Talvez um brinco, um diário ou um frasco do perfume italiano que usava. Era francês, mas só para ser diferente dizia ser italiano. Os outros trabalhadores não chegavam perto dela. Não falava com ela. Como entrou ali ninguém viu. O que ela queria, ninguém descobriu. Ela andava e caminhava com seu vestido por entre as pedras que formavam um quebra cabeça do que fora aquela construção. O que passava em sua cabeça? Quem a deixara entrar ali? Será que não tinha medo? Queria encontrar passos por aqueles caminhos de enlameados?

Se bíblica, queria encontrar o próprio homem feito de barro. Mas parecia estar além das religiões. Seus deuses estavam perdidos ao meio daqueles escombros. Seus heróis foram reduzidos a um monte de cascalho grosseiro. Suas esperanças, de verde, passaram a não ter cor, tal e qual aquele cenário de horror. Sua doçura foi transformada em pedra. E quantas eram as pedras que cruzavam o seu caminho. Os suores de sol e de tremor escorriam pelo seu corpo quente como um desmoronamento de pedras. A sua beleza, as suas expectativas, as suas frases bonitas brotavam como flores de pedra no meio daquelas ruínas.

Numa tenda improvisada ao lado da construção, a cigana que lia passado e futuro na borra de café contara que a menina estava ali porque queria desenterrar sonhos. Os seus sonhos. Os sonhos que foram enterraram ali, como corpos sem dono. Sonhos de quando aquele lugar ainda era uma praça de diversão, de conversas fiadas, de paqueras de olhares e de longos abraços. Mas ela chegara tarde e tarde demais. O seu tempo de menina estava soterrado. Se houvesse algum sonho sobrevivente haveria de estar muito ferido. Tão ferido quão os olhos daquela menina que observava aquelas duas escavadeiras que, com seus braços longos, quase se abraçavam como dois cisnes amarelos.


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