Daniel Campos

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Fogueira

Em plena cidade grande, o céu de nanquim é cortado por fogos. Fogos de fagulhas reluzentes. Estrelas de pólvora. Estrelas efêmeras. Estrelas fugazes. Estrelas instáveis. Estrelas de moças e de rapazes. Ora luz ora sombra. Ora tudo, ora nada. Ora enchendo os olhos de alguém ora sumindo de vista. E era assim que aquela menina olhava os céus ? como quem olha um cartão postal pela primeira vez.

Por alguns minutos, ela consegue se sentir dona daquele céu de brilhos repentinos. Brilhos que explodem de dor ou de prazer e gritam na língua dos estrondos. Por alguns minutos, ela consegue se esquecer da vida e de tudo mais que a rondava. Ela, num estágio ômega ou alfa de meditação, consegue a proeza de deixar de pensar. Só sonha. Sonha com aquelas estrelas que tão logo alcançam o céu, caem como uma chuva de luz. E ela consegue se sentir sozinha, como que no meio de um descampado, observando aquelas pétalas de fogo se formando e se desmanchado no céu.

É como se seu corpo estivesse ali no meio daqueles milhares de festeiros que passam por entre as dezenas de barracas daquela quermesse contemporânea com cachorros quentes, pipoca, caldo de cana, canjica, pastel, galinhada, quentão, chocolate quente, refrigerante, cerveja, nas mãos. Pessoas que passam por entre pequenas mesas quadrangulares metálicas ao som de músicas que, na verdade, são hits do pop nacional e internacional. A fogueira também não arde. Aliás, a fogueira mais próxima queima a pouco mais de um dia e duas noites de estrada. Mas ela não precisa pegar estrada para ver, ouvir e pular a fogueira de chama grená.

E ao olhar os fogos, ela ouvia a ciranda de uma quadrilha. Olha a chuva! É mentira! Olha a cobra! É mentira! Vamos dar a volta! No meio da multidão, ela sente o cheiro do bolo de fubá cremoso, do amendoim torrado, das bandeirolas de jornal... Embora ninguém perceba, ela se veste de outro modo. Em seu corpo, um vestido estampado com direito a um rendado. Seus cabelos ganham tranças. Enquanto todo mundo passava de jeans e de tênis, ela passa de vestidinho de manga comprida e descalça.

Ela espera ser flechada por um correio elegante enquanto quebra o frio nos arredores da fogueira que estrala uma madeira verde. Isso tudo depois dela ter rezado dezenas de ave-marias no terço que antecede o levante do mastro. E ela aplaude quando uma voz na multidão grita: viva são antônio, são joão e são pedro. E sua boca, que era boca de ficar com tantas outras bocas, naquela noite só havia beijado o quadro dos santos enquanto as rezaderias cantavam. Santo antônio disse missa, são joão benzeu o altar e são pedro está dizendo venham todos a beijar, venham todos a beijar, venham todos a beijar...

De repente, o céu fica escuro. Os fogos não mais sobem ao céu e aquela mulher, como uma viajante do tempo, despenca em uma festa com uma saudade caipira nos olhos.


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