Estado de emergência
Lá, deve haver aquele cachorro que anda com os olhos baixos e as costelas quase perfurando a pele. Lá, deve haver aqueles que andam com latas na cabeça, o dia todo, a procura de um pouco d?água. Lá, deve haver aquelas mães que velam seus filhos ainda bebês. Lá, deve haver aquela menina que sonha com romances nunca lidos (os olhos não sabem ler essas coisas). Lá, deve haver aquelas noites que se tornam ásperas como as mãos que lidam com a terra. Lá, deve haver aquela vontade de não se ter a hora do café, do almoço, do jantar, por não se ter o que comer. Lá, deve haver aquele homem que revira a poeira da terra com os pés, aliás, aquele homem não deve ser nem mais homem, deve ser poeira. Lá, deve haver aquela cabra que quando grita não se sabe se é de dor ou de tristeza. Lá deve haver aquela roça de milho que secou antes das espigas. Lá, deve haver aquele menino que corre com a barriga cheia de vermes. Lá, deve haver aquele rio onde correm as rachaduras da terra. Lá, deve haver aquela senhora que ascende uma vela à imagem de um santo, assim como faziam sua mãe, sua avó, sua bisavó e reza as mesmas rezas.
Dentre a paisagem seca, Guaribas surge nas entranhas do Piauí. Surge depois de uma estrada feita de pirraça, areia e buraco. Mesmo que o mundo pareça desaparecer sob os pés, surge Guaribas. Uma cidade perdida entre Deus e o Diabo. É difícil chegar e sair de Guaribas sem seqüelas. Quase cinco mil pessoas e só 1% tem água encanada e banheiro com vaso sanitário. E só alguns prédios, o posto de saúde, a igreja e a casa do prefeito possuem pintura. De resto, falta cor ou sobra a cor do barro. As ruas e as casas são de barro.
Não é só em Guaribas que se vive a pobreza, porém, lá, talvez seja mais fácil notá-la. Lá, talvez ela se faça mais forte. Lá, talvez não se tenha outra escolha. E é por isso que Guaribas é a partida do governo social de Lula. É a primeira vez na história do país que a pobreza vai ter um governo. Saem de cena as viagens para os palácios da Europa e entram as viagens para o centro da pobreza (ao menos é o que se escuta). Brasil, eis a tua pobreza. Brasil olha para este Brasil, veja teus braços magros, teus seios murchos, tua boca seca. Seca de sol. Seca de fome.
O governo Lula começa com a promessa de acabar com a fome instalada no país. Entretanto, é difícil acabar com algo que foge do concreto. Porque a fome é a conseqüência de todos os direitos que foram roubados daquelas pessoas. É a fome física e é a fome da exclusão social. Tão pior quanto não ter o que comer é não ter o dinheiro para comprar o que comer. Não ter dinheiro é não ter emprego, é não ter qualificação, é não ter perspectiva e também, é não ter dignidade. O projeto Fome Zero que terá seu embrião implantado em Guaribas para depois se alastrar pelo país é emergencial, concordo, mas o estado social do país é crítico. Agora, o governo não pode se encher de boas intenções e esperar, somente, pelos resultados de longo prazo, é preciso agir de imediato, seja como for.
Uma ajuda de cinqüenta reais mensais pode ser pouca, mas aquelas pessoas não ganham um real por dia. É preciso ter consciência que se faz necessário um começo, mesmo que esse começo não seja um milagre. Sabe-se que a situação financeira do país é complicada. Logo, o programa Fome Zero estará nas telas da TV convocando o Brasil para ajudar o Brasil. Um Brasil que é Barra da Tijuca e é Guaribas. Lula talvez seja o único capaz de unir esses tantos pedaços de um mesmo Brasil.
Em Guaribas, a política rende espaço à sobrevivência. Lá, eles sabem que tem fome e isso basta. Eles não têm bandeiras ou estrelinhas no peito. Lá, o vermelho não é uma religião, é uma sina que tende ao medo. As vistas só se enchem de vermelho quando o sol entra como brasa por detrás daquela vegetação seca. O que se espera é que a partir do Lula a chuva não seja mais a única esperança.
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