Daniel Campos

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07/12/2008 - Entre a lembrança e o esquecimento

Os sinos da catedral ainda tossiam o pigarro das dezoito badaladas quando ele lembrou que havia esquecido o aniversário de sua namorada. Estava na praça central da cidade e o mundo parecia girar contra suas vontades. Pegou o telefone para ligar para ela, que já devia estar num profundo mau-humor. Mas o nervosismo o fez esquecer o número do celular, do trabalho, da casa dela. Foi então que achou essa amnésia súbita um achado do destino, que lhe pedia algo a mais do que uma simplória ligação.

Foi até a primeira floricultura que encontrou e saiu pelas ruas correndo com 24 rosas vermelhas. Comprou um cartão em alto-relevo. Porém, ao escrevê-lo, a crise do esquecimento voltou e ele ficou com o papel em branco em sua frente. Como não tinha tempo a perder, decidiu chamá-la de inesquecível. Meio demagogo, mas foi o que lhe surgiu. Ainda redobrou as apostas no destino e além das rosas, comprou um vinho húngaro, duas taças de bojo avantajado e um desses bichinhos de pelúcia.

Pronto, tudo estava ensaiado em sua cabeça. Era só ir a casa dela e surpreendê-la, dizendo que o esquecimento fora proposital. Para aumentar o grau da surpresa, pularia a janela de seu quarto e a esperaria em sua cama. Mas e se ela se assustasse? Mas e se ela achasse íntimo demais achá-lo deitado em sua cama? Mas e se o pai dela o alvejasse com olhares calibre 38? Para piorar seu estado de nervos, não lembrava se ela era de sustos, se ele era íntimo o suficiente para deitar em sua cama ou qual o tipo de reação que tinha com o sogro. Tudo lhe sumira da mente.

A única pergunta que não saia de sua cabeça era: o que aconteceu? Será que bebi demais ontem? Será que, ao menos bebo? Será que levei alguma pancada na cabeça? Será que eu sofro de algum mal desconhecido? Será que eu fui abduzido? Será que eu fui capturado por agentes secretos e sofri alguma espécie de lavagem cerebral? Será que eu sabia demais? Será que o espírito de Platão desceu em mim: só sei que nada sei? Será que isso tem cura? Será que...

Diante de tantas dúvidas, o dia caiu, a noite raiou, como um sol negro, e ele foi ficando estático. Transformou-se em uma estátua a mais no meio de uma dessas praças cívicas. A aflição lhe foi engessando, paralisando, neutralizando. Ah! Se ao menos ele lembrasse seu endereço, seu nome, seu rosto. Começou a mergulhar em um imenso vazio. Um verdadeiro buraco sem fundo. Foi quando viu uma mulher passando pela rua. O balançando tinha algo de familiar e ao mesmo tempo de desconhecido. Antes das lembranças chegarem por completo, correu ao seu encontro. Não poderia cometer outra gafe.

E minutos antes que o sino gritasse 19 horas, jogou-se aos seus pés, cantando assim:

Sei que desculpas não dão em botões
Mas aceita essas rosas vermelhas
Aceita os meus perdões
Aceita a minha vontade de tê-la
Em meus braços outra vez
Como se fosse à primeira vez
Teu amor me salvou da morte
E deu um novo norte
Aos meus passos
Que só continuam a ser
Para encontrar teus traços
Para além do anoitecer.

Ao som dos aplausos de meia dúzia de pedestres apaixonados e das buzinas insistentes de um carro sem paciência, que queria passar sobre o monólogo do rapaz, a mulher se curvou e colou seus lábios aos dele. Seus corpos foram se encontrando e desenhando uma arte moderna pelo meio da praça. O beijo teve a duração de exatos cinqüenta e oito segundos. Ela se encantou com as flores, com a declaração de amor, com a pelúcia. Ficou até um tanto envergonhada tamanha a surpresa.

De certo, havia perdoado o namorado por ter esquecido de lhe cumprimentar antes. Perto de um tímido chafariz, abriram o vinho e ela perguntou sobre o brinde. Ele foi enfático ao dizer: ao seu aniversário. Ela sorriu, meio sem graça, dizendo que já comemorou essa data há sete meses. Mas como ele pode ter cometido tal engano? Era a sua única certeza que o dia de hoje era o aniversário dela. Sem deixar o clima cair, propôs então que brindassem ao amor, porém ela disse que não o amava. Aquilo tudo não passou de uma loucura. Ela era comprometida e só o beijou porque ficou surpresa. E agora, feito cinderela arrependida, precisava ir, correr, voar. Então ele, em sua última cartada, propôs um brinde a ela, que era bonita demais. E a mulher de olhos embriagantes, pela terceira vez, negou o brinde dizendo que ela, em si, não existia.

Para aumentar a dramaticidade da cena, o seu adeus foi composto pelo mesmo tom de balançado de sua vinda. Ela foi embora levando apenas o que restou do beijo em seus lábios. As rosas ficaram pelo chão, servindo de asfalto para os carros. O bichinho de pelúcia rósea se afogou nas águas do chafariz azulado, provocando um choque de cores e dissabores. E as taças de vinho se quebraram pela ausência de um brinde, manchando as sombras do chão. A mulher desapareceu na escuridão, deixando somente algumas notas de um perfume de tulipa e a febre de um beijo grená. E o rapaz foi se perdendo naquelas notas, naquele ardor...

Foi então que um pássaro deselegante borrou a sua cara com um excremento de umidade fria e odor desagradável. As notas sumiram, o ardor sumiu... ele ainda era uma estátua no meio da praça, perdido de si próprio. Mas ao badalar das 19 horas a sua memória voltou, lembrando-o de que ele não havia se esquecido de nada, de absolutamente nada. E seu erro foi achar que tinha esquecido um presente, um aniversário, um alguém, um amor, um compromisso... Apenas o badalar dos sinos havia o colocado, em uma dimensão paralela, entre a lembrança e o esquecimento.


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