07/08/2011 - Ela não era do mar
E foi então que ele entregou seu maior segredo na frente das câmeras, em rede nacional, no horário nobre, no intervalo do jornal. Ela titubeou, gaguejou, fez olhos de choro, envermelhou as maçãs do rosto. Não conseguiu dizer que era mentira. Diante de tanta indelicadeza, assumiu, sem qualquer vaidade, sua fraqueza, sua fragilidade. Ela tinha medo do mar. Era uma espécie de sereia da areia. Não suportava as ondas da maré cheia. Dizia até que o sal do mar deixava-a feia. Mas não havia desculpa que desse jeito na situação. Um tremendo mal-estar.
Explicava que por ser uma menina do interior preferia ter os pés em terra firme. Nada de arrastos, de repuxos, de caldos. Surfava apenas na internet, pegando tubos imensos de ondas digitais. Da praia, só gostava das conchas. Tinha colares e mais colares de madrepérolas. Recusou o convite de um pescador para embarcar numa daquelas traineiras. Também não quis cortar o mar num Jet-sky, nem fazer um cruzeiro com destino ao Haiti. Rompeu um contrato profissional que exigia que ela entrasse na casa de Iemanjá.
Gostava de ficar na areia dando pinta, dourando seu corpo e olhando os banhistas. Mas nada de se molhar. No muito, hidratava seu corpo com água de coco. Não tinha fetiche de cair no mar nem mesmo para ser resgatada por um salva-vidas. Quando dois amigos a pegaram pelos braços e pernas e a jogaram no mar ela se esquivou e unhou e berrou e caiu em pé, no seco, como uma gata. O terapeuta argumentou sobre um afogamento em vidas passadas. E ela, que acreditava até mesmo em fadas, se conformou, ou melhor, se acomodou.
Fingiu que era rata de praia, que tinha parafina nos pés e areia na saia. Nas rodas de amigos, falava gírias de surfistas. Tudo para não ser vítima de piadinhas e de armações. Mas agora sua farsa foi revelada. O que fazer? Enfrentar seus traumas ou abandonar de vez o litoral? Seja lá o que decidisse, teria de se reinventar. Pois ela, até então, era musa das canções marítimas, miss-oceano pacífico, garota propaganda de uma marca de biquínis, nome a uma linha de lanchas...
Sua vida estava atrelada ao mar. Seu último namorado era mergulhador profissional. Acabou desmanchando o namoro depois que percebeu que ela não era uma escafandrista. Tinha horror a essa história de amor numa ilha deserta. Desistiu de seguir uma seita depois que ficou sabendo que teria de ser batizada no mar. Preferia o azar a buscar a sorte pulando sete ondas na noite de réveillon. E, depois de tanto se recusar a cumprir essa simpatia, o azar parece ter chegado como um tsunami.
Depois que a água abaixasse contabilizaria os estragos, veria o que sobrou em pé e como um Moisés de saias, tentaria abrir o mar para seguir em frente.
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