Daniel Campos

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31/07/2011 - Ela domingo

Era domingo. Era só isso o que sabia. Nada mais. Era só a certeza de uma data, ou melhor, de um dia de uma semana que não lhe trouxe maiores lembranças. Não sabia quem era, somente que viveria mais um domingo. Talvez o último, talvez o melhor ou o pior também. Não se lembrava de segundas ou quintas, nem de quartas ou sábados, tampouco das terças, mas acordou com a certeza de que estava num domingo. Isso poderia ser um sinal ou um avanço, seja lá de sua sanidade ou se sua loucura.

Era dia de vestir sua melhor roupa e seguir aos almoços familiares, ao cinema, ao estádio de futebol, à igreja, à praça, à sorveteria, à casa do namorado... No entanto, ela só tinha pijamas no guarda-roupa. Dezenas deles. Seja lá quem fosse, vivia boa parte de seus dias na cama. Também não se lembrava de ter família, de seu filme preferido, de seu time, de sua religião, do endereço da praça, de seu sabor de sorvete, de ter alguém para beijar e dividir seus esquecimentos.

Era horrível a sensação de não saber se um dia já amou. Esqueceu do primeiro beijo e de todos os beijos posteriores, se é que algum dia eles de fato existiram. Esqueceu das possíveis palavras de amor, dos presentes, das carícias... Esqueceu até mesmo se ainda era virgem. Não sabia nada de seu corpo, de sua mente, de seu coração. Era uma estranha habitando uma casca de mulher. Entre tantos não saberes, não sabia seu nome, seu sobrenome, seu codinome e o que comer para matar sua fome de si mesma.

Era domingo. Era só isso o que sabia. Nada mais. E para ela isso era muito. Pois ontem não soube que era sábado e anteontem nem desconfiou ser sexta-feira. Deveria existir alguma razão para sua domingueira súbita. Não sabia o que fazer. Por onde começar seu domingo. E era preciso agir rápido, pois talvez amanhã não tivesse essa lucidez de que dia habitava. Era preciso viver aquele domingo como se ela, perdida em pensamentos, fosse o próprio domingo.

Era domingo. E domingo seria o seu nome, a sua profissão, o seu endereço, o seu prato principal, a sua chegada e a sua partida, o seu verdadeiro amor, a sua roupa predileta, o seu bicho de estimação, o seu segredo, a sua crença, o seu espelho. Era domingo. E domingo seria a sua música, a sua saudade, a sua família, o seu contentamento, o seu portfólio, a sua sina, o seu perfume, o seu sexo, a sua lei e o seu derradeiro nascimento. Era domingo. Ela domingo.


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