25/08/2014 - E agora, dona Ofélia?
E agora, dona Ofélia, quando é que eu vou comer bolinho de chuva daquele que só a senhora sabe fazer? Não deu tempo de aprender nem o doce nem o salgado. Recebi os bordados que fizera para eu guardar como lembrança, porém eu queria mais; Mais do que lembranças. Meus olhos nunca se esqueceram das suas mãos bailando pelo meio daquelas meadas de linha. Da última vez que nós nos encontramos eu não me fiz de rogado e comi meu bolo de aniversário adiantado, mas eu ainda esperava ter outras desculpas para comemorar com essa receita única. As flores de seu jardim já devem estar preocupadas, chorosas mesmo sem orvalho, todas carentes das suas mãos tão férteis. Aliás, a preocupação é geral. Os milharais estão desolados, pois o sonho de toda espiga de milho sempre foi acabar em suas mãos no ponto prefeito de um certo cural que ninguém faz igual. As mães sofrem com suas crianças cheias de quebranto sem saber se essas mãos vão voltar a pegar no terço para benzer. As bonecas que ganhavam roupinhas para serem vendidas em bazares beneficentes devem estar se sentindo nuas. Os botões andam desabotoados com a ideia de não contar mais com suas casinhas artesanais pelas camisas afora. Suas amigas da novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro devem estar se perguntando a razão disso ter acontecido justamente com a senhora. Assim como a preocupação , a perplexidade é lugar comum diante do acontecido. Será que por conta dos remédios a senhora não tomou ou não tomou a quantidade necessária de seu fecha-corpo na última Sexta-Feira Santa? O que aconteceu com sua luta incessante pela liberdade? Difícil de acreditar que aquela mulher que não queria depender de ninguém agora está sobre uma cama completamente dependente. E que história é essa de não falar mais? Para não trazer à tona a falta que vão sentir de suas histórias e aconselhamentos baseados numa sabedoria que une tempo ao sentimento, vou dizer de como será difícil lidar com o silêncio calando sua voz extremamente afinada graças a esses ouvidos apurados no piano. E uma das últimas coisas que ouvi de sua boca dias atrás foram perguntas de como é a vida após a morte... (Pausa) Esses dias chegou até aqui uma foto da senhora comendo um doce de abóbora feito para mim e agora vem com essa de não querer comer mais nada? Sonda? A senhora sempre fez questão de arrumar o próprio prato depois que todos já estavam comendo. Tudo se revirou da noite pro dia numa mudança brusca sem margem para entendimento. Mas a questão é a seguinte, dona Ofélia, como é que eu vou para aí se na hora de eu chegar não vai ter aquele abraço tão apertado quão demorado e na hora de me despedir a senhora não vai estar mais em pé no passeio acenando, acenando, acenando até o carro desaparecer de suas vistas, de suas vistas que ninguém sabe se ainda são capazes de enxergar para além de suas memórias.
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