Daniel Campos

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Dois dedos de prosa

Fim de tarde. Fim de inverno. Fim de campanha eleitoral. Toca o telefone. Do outro lado, uma voz frágil e, ao mesmo tempo, forte:

- Daniel?!

- Sou eu...

- Não reconhece mais a voz do irmão do Henfil?

- Não acredito... Betinho! É você? Quanto tempo!

- Pois é, quanto tempo!

- Hummm deixe-me adivinhar. Você me ligou para dizer, em primeira mão, que graças a sua intervenção aí em cima, o todo-poderoso vai fazer um milagre e acabar com a fome.

- Daniel Daniel... A fome é coisa dos homens... Mas a minha ligação é para outra coisa... Vai votar em quem?

- Queria votar nos seus sonhos, mas está difícil achar os números que digito na urna.

- Sabe, o que nos falta é a capacidade de traduzir em proposta aquilo que ilumina a nossa inteligência e mobiliza nossos corações: a construção de um novo mundo.

- Mas para isso precisamos de uma política limpa e diante do que estamos assistindo...

- Eu sempre disse que o Brasil tem fome de ética e passa fome em conseqüência da falta de ética na política.

- Mas voltando a esse novo mundo, você acha que ainda dá tempo?

- Falando como bom mineiro, às vezes a vida, o sofrimento, as injustiças é maior que nóis. Mas se a gente acreditá numa luzinha que mora no fundo de dentro da gente, a gente vorta a sonhá. Vorta a sabê que nóis, que gente foi feito prá inventá o mundo de novo, prá muda e desmudá, carregando alegria.

- E como fazemos isso?

- Votando...

- Nossa participação não pode ser apenas no voto. Você mesmo foi muito além. Não é hora de gritarmos por uma grande reforma política?

- Concordo... só a participação cidadã é capaz de mudar o país. Em resposta a uma ética da exclusão, estamos todos desafiados a praticar uma ética da solidariedade.

- Como diz Leonardo Boff, temos de construir um novo Ethos.

- Isso. O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade.

- Mas a ética da exclusão nos sufoca mais e mais a cada dia. O Brasil foi construído dizimando milhões de índios. Depois, escravizando negros. E hoje, milhares de brasileiros são consumidos pela exclusão.

- Hoje, a terra e a democracia aqui não se encontram. Negam-se, renegam-se. Por isso, para se chegar à democracia é fundamental abrir a terra, romper essas cercas que excluem e matam, universalizar esse bem, acabar com o absurdo, restabelecer os caminhos fechados, as trilhas cercadas, os rios e lagos apropriados por quem, julgando-se dono do mundo, na verdade o rouba de todos os demais.

- Mas os políticos não conseguem fazer uma imersão na realidade e por isso não criam asas... Não conseguem nos fazer sonhar... Acabam, em sua maioria, ocupando um espaço medíocre entre o inviável e o viável, entre o possível e o impossível.

- É importante ver, com os dois olhos, os dois lados - para mudar uma única realidade, a que temos.

- Um novo Ethos para regressarmos à velha Gaia.

- Por isso, é preciso olhar a propriedade da terra
com o olhar da democracia, com o olhar da vida, e não com o olhar da cobiça, da cerca, da violência...

- Mas para isso é necessário um novo Cabral chegar aqui e nos redescobrir. Queria tanto que você...

- Meu caro, para nascer um novo Brasil, humano, solidário, democrático, é fundamental que uma nova cultura se estabeleça, que uma nova economia se implante e que um novo poder expresse a sociedade democrática e a democracia no Estado.

- Mas nós, sonhadores, já somos tão poucos. Estamos correndo um sério risco de extinção...

- Meu irmão costumava falar que se não houver frutos, valeu a beleza das flores; Se não houver flores, valeu a sombra das folhas; E, se não houver folhas, valeu a intenção da semente.

- Eu tenho fome de esperança, Betinho...

Um silêncio toma conta da ligação...

- Betinho! Betinho! Você está me ouvindo?

E ele responde cantando bem baixinho...

- "A esperança, dança, na corda-bamba de sombrinha, em cada passo dessa linha, pode se machucar. Azar! A esperança equilibrista, sabe que o show de todo artista, tem que continuar".


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