Daniel Campos

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Diário de um super-homem às avessas

Sei horas da manhã. Não há galos que cantam, relógios que despertam... Só há um corpo que se levanta forçado pelo hábito. Lá esta ele, olhando os cantos da casa. Cada bibelô, cada grão de poeira, cada metro de chão ou de parede. Esfrega a mão na cabeça do filho pequeno entregue ao sono, por entre os cabelos, como quem faz uma prece. Uma prece para ninguém escutar. Toma um gole amargo de café. Apanha uma sacola, a mesma de todos os dias. Passa em frente da imagem de uma santa, benze-se. Olha para os olhos fundos da mulher, por alguns segundos estáticos. Olhos que se dão como duas estátuas. Um beijo leve. Um beije breve. Um beijo e mais nada. Faz tudo sempre igual. Abre a porta, o rangido de costume, com a mesma testa franzida, nervosa. Faz tudo como se fosse pela última vez. Ela diz para ele se cuidar. Ele engole seco e sem coragem de olhar para trás, sufoca o adeus.

Deixa o barraco. Desce o morro. Desfaz o breu. Toma dois ônibus lotados de rostos sequer amanhecidos. Na rodoviária, o banheiro. Olha para os lados, nenhum conhecido. Entra com o embrulho amarrotado na sacola. O cheiro forte de urina, os azulejos rabiscados e um suspiro profundo. Desembrulha o pacote maltratado. Troca de roupa e não é roteiro de filme do super-homem. Sem querer repete o gesto e vê no espelho os velhos dramas.

Era Pedro fulano de tal, de tantos Pedros que caminham por aí. Pedro com pouco mais de trinta anos de desenganos sem muitos planos. Pedro com traços de medo, de desassossego, de pouca conversa. Pedro de Pedros que carregam as mesmas histórias, as mesmas responsabilidades, as mesmas vergonhas. Pedro como outros Pedros que vivem de um salário que não vale a pena ser Pedro. Pedro de mulher, de filho, de família como outros Pedros assustados, preocupados, insatisfeitos. Pedro de tantos Pedros que se escondem debaixo de uma farda. A farda, o revolver e o título de policial amarrotados, mal amados, envergonhados num espelho comum pendurado num Brasil qualquer.

O mundo é uma hélice que gira e nem sempre volta ao mesmo lugar. Antes, o sonho. Crianças brincando de bandido e mocinho. A farda engrandecia um homem. Agora, a farda é tida como bandida. Quantos os problemas que não se depositam naquela veste. O homem deturpado pela farda. Era herói e num piscar de olhos vilão, salvava vidas sendo chamado de assassino. Com o rosto escondido, o protesto e o descaso. E no final do dia, depois dos tiroteios, das perseguições, das ofensas, das emoções guardadas,..., aquele homem deixa a delegacia com a mesma cara amarrada, angustiada, azeda e segue para um condomínio. O policial da favela ronda as mansões. A farda e os biscates de segurança particular. A farda, a arma, o cansaço e alguns trocados a mais no final do mês.

Ônibus anoitecidos. O banheiro da rodoviária. O espelho. O desespero. O desabafo interior. Pouco mais de meia-noite. O subúrbio. Alguns crimes pelo caminho do morro assistidos calados. A farda escondida na sacola. Com ares de rotina, abre a porta do barraco sem trinco. Espera que ainda os encontre vivos. A mulher e um beijo mais demorado com gosto de alívio. As panelas esquentando no fogão. O filho cochilando diante da TV. Filho que quando ouve a voz do pai desperta de um sono carente. Um abraço forte. No abraço, confidencia seus desejos. Queria ser policial igual ao pai. Corajoso e honesto. Os dois calam-se num abraço. O filho com tantos sonhos ingênuos e o pai com os olhos abatidos e úmidos abraçam-se em um silêncio que grita.


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