Daniel Campos

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17/03/2015 - Deixa-me

Deixa-me oficialmente porque coloquialmente já tinha se esvaído dos meus braços. Deixa-me fechando, trancando, lacrando as portas porque a dor das dores se chama esperança. Deixa-me à deriva num oceano de incertezas à mercê dos piratas cegos de amor. Deixa-me sem precisar apelar para as falsas acusações, pois saiba que não precisa de desculpa para seguir seu caminho. Deixa-me sem compreender o meu amor que foi tanto, mais que tanto, e mesmo tanto, insuficiente para matar a sua sede. Deixa-me atordoado, machucado, tombado sobre os escombros do que construí por nós. Deixa-me como quem deixa o que perde a validade. Deixa-me e, por favor, não ouse falar em saudade. Deixa-me porque todos os seus motivos são o bastante para tal deixa. Deixa-me sem culpas ou arrependimentos, não somos melhores que os ventos que acabam e começam e reacabam e recomeçam a todo instante. Deixa-me levando a certeza do meu amor sincero, verdadeiro, intenso... Deixa-me sabendo que será para sempre, todo o sempre, sempremente, inesquecível. Deixa-me atolado nessa areia movediça de lembranças na qual quanto mais mexo mais afundo. Deixa-me doendo o seu sofrimento, pois nunca suportei lhe ver sofrer, quanto mais lhe fazer... Deixa-me com as marcas dos meus erros. Deixa-me insuportavelmente carente. Deixa-me no que resta de nós. Deixa-me iludido com o que fui, com o que signifiquei, com o que simbolizei para você. Deixa-me de uma vez por mais que a vontade seja de deixar aos poucos. Deixa-me sem voz, sem cheiro, sem tato, sem som... Deixa-me como quem deixa um porco para o abate, sabendo que por mais que doa a dor alheia só fará doer-me mais. Deixa-me sangrando nossos sonhos incompletos. Deixa-me como uma mensagem dentro de uma garrafa, seja eu um pedido de socorro ou uma declaração de amor perdida no tempo. Deixa-me como numa música de Chico Buarque. Deixa-me como quem deixa um livro sem terminar de ler. Deixa-me com espaços vazios entre os primeiros parágrafos e o derradeiro ponto. Deixa-me como uma aliança sem par, como um romeu sem julieta, como um poeta sem musa. Deixa-me tentando me convencer de que é o melhor para nós dois. Deixa-me como quem deixa a vida para depois. Deixa-me para além de um blefe, numa cartada final, e se quiser maltratar de vez é só chamar de moleque, de cafajeste ou de pivete. Deixa-me e se for para não ter volta é só afirmar que sou igual a todos os homens que já passaram e ainda vão passar pela sua vida. Deixa-me e se for de verdade, basta se despedir uma só vez sem me chamar de amor. Deixa-me como fruto mordido, como um dia esquecido, como um mal resolvido, como um sentimento proibido. Deixa-me no desejo de ter vivido muito, muito, muito mais ao seu lado antes de ter sido decretado passado. Deixa-me porque mais dia menos dia o que pesa na bagagem deve ser deixado pela estrada. Deixa-me porque ninguém é obrigado a suportar um amor demais. Deixa-me pelos cantos, só não precisa dizer com todas as letras que acabou o encanto. Deixa-me, mas não rasgue de seu diário as páginas que dizem sobre mim, pelo menos não na minha frente. Deixa-me inesperadamente depois de tantos ensaios. Deixa-me consciente de que por uma época me chamou de vida e acreditou que eu fosse sua metade perdida. Deixa-me com sua pele ainda em minhas mãos, com seu cheiro grudado em minhas narinas e com meu destino ainda se casando com sua sina.


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