Daniel Campos

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Deita

Deita. Deita de bruços, com as pernas cruzadas, e com um livro nas mãos, como uma adolescente que sonha com príncipes vindos em cavalos brancos. Deita e tem em seu corpo sete cores deitadas. Deita e transatlânticos jogam suas ancoras naquele mar de pele. Deita e os desejos dos sonhadores mergulham a sete palmos. Deita e parece ser imbatível. Deita e ganha elasticidade. Deita e se distende. Deita e se contorce. Deita e nos entorta. Deita e um atirador lança facas em torno de seu corpo. Deita e muda o trajeto das estrelas cadentes. Deita e os sonhos se levantam e caminham pela casa como sonâmbulos. Deita e o longe se amansa. Deita e os desejos submergem em seu corpo como areia movediça. Deita e os olhos se fecham em copas. Deita e os anjos caem. Deita e o corpo lateja. Deita e a boca e abre como uma flor carnívora. Deita e há quem diga que morreu e há quem diga que acabar de nascer. Deita e as nuvens se agitam para uma chuva de algodão doce. Deita e os trens descarrilam. Deitam e as rodas gigantes saem rodando pelas ruas da cidade baixa. Deita e o lençol muda de cor, de textura, de temperatura.

Deita e um perfume se levanta. Deita e uma promessa vai a pique. Deita e o pecado começa uma novena. Deita e as pernas produzem ângulos nunca dantes calculados. Deita e as costas se esparramam como um deserto, com direito a tempestades de areia e de tempo. Deita e uma fênix, ainda em chamas, cai em parafuso em seus cabelos. Deita e o vento traz na boca um punhado de sementes. Deita e a lua entre em trabalho de parto. Deita e as flores se desmancham. Deita e a esperança pega as malas e se vai de partida. Deita e as asas rasgam as suas costas. Deita e o sol queima lilás. Deita e uma asa delta enrosca em seu cabelo. Deita e o céu abaixa.

Deita e balões de cheiro vão pousando, um a um em seu colo. Deita e um exército de exploradores caminha por suas pernas. Deita e uma legião de bichos de pelúcia bate à porta. Deita e o beija cai na cópula flor. Deita e as fantasias fogem dos manicômios. Deita e adão, em busca de sua eva, planta macieiras e espera. Deita e os pensamentos correm a quilômetros e quilômetros dali. Deita como uma muralha. Deita frágil e forte. Deita a ferro e fogo. Deita como uma pintura de contemplação. Deita como um fá sustenido em partitura. Deita e a vida borbulha. Deita e há um cálice que brinda. Deita e há um cálice que quebra. Deita e há um cálice que derrama um medo que se deita em prazer ou será um prazer que se deita em medo.


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