Daniel Campos

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Dama dos mortos

Entre túmulos e cruzes, ela caminha. Não é velório, enterro ou aniversário de óbito de algum parente, amigo, namorado. Como ontem, anteontem e trasanteontem também não o foi. Não é gótica. Não se veste de negro, mas gosta de ficar por ali, lendo a poesia fúnebre das lápides frias. Gosta de ficar perambulando e cheirando o perfume fúnebre das flores fúnebres. Em sua maioria, crisântemos brancos, roxos, amarelos. No seu suor, o cheiro de cravo de defunto escorria pelo seu corpo não menos gélido.

Gostava de andar com os pés descalços naquela terra. Amaldiçoada para muitos, sagrada para ela. Acompanhava enterros como se fosse o seu. Ah! Chegava a sonhar deitada de mãos cruzadas presas por terços negros deitada naquela madeira pouca e muita. Acendia velas, carregava velas e se iluminava de sombras e assombrações. E ficava ali, sem medo nem pudor.

A família já desistira de entendê-la. Ela nem bebia nem se drogava nem, ao menos, fumava, apenas gostava de ficar por ali, naquela atmosfera fatídica e fétida. Abandonou o curso de psicologia para se dedicar em tempo integral ao cemitério. O último namorado implorou, tentou acompanhá-la, fazê-la desistir, mas quem desistiu foi ele. Aliás, ela parecia ter desistido do mundo do lado de fora do cemitério.

Ali, ela se sentia mais forte. Entre ossos e vermes, ela caminha como um espírito perturbado. Já chegou a dormir naquelas gavetas de concreto. E dormir um sono tranqüilo com direito a sonhos cor-de-rosa. Era conhecida com a dama do cemitério. Cabelos soltos, vestido longo e um batom vivo, como se fosse à senhora dos mortos. E fazia jus ao título, entre suas caminhadas, ouvia as cantadas mais baratas das bocas dos coveiros e se entregava, sem cerimônias, sobre as campas.

Suas unhas eram sujas de terra, posto que ela escavava aquele terreno na esperança de encontrar algo ou alguém. Dia e noite, numa espécie de arqueologia morta, vasculhava aquelas terras. Não era católica para acreditar em ressurreição, não era espírita para pensar em reencarnação, não era de atlântida para esperar a vida eterna... No entanto, esperava ansiosamente pelo levante dos mortos.

Entre doses de loucura e sanidade, sentia-se vencedora entre tantas coroas de flores. E quando tinha muita gente, como dia dos pais e finados, sentia-se irritada, passível de cometer alguma loucura. Na verdade, ela sofria doentiamente ciúme de seus mortos. Ali, era o seu império, o seu reino perdido, o seu eu mais secreto. E, com olhos de catacumbas, ficava ali esperando a volta de amores que foram enterrados ao seu contragosto.


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