Daniel Campos

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Crime passional

Quase três da tarde. O sol, de vergonha ou de raiva, é uma vermelhidão só. O tempo demora a passar. Ela, sozinha, deitada sobre o lençol listrado de uma cama de casal. As listras corriam paralelas como as barras da penitenciária mais próxima. Seus olhos falsamente estáticos, feito dirigível. Ah! Olhos de dirigível. O telefone a menos de dois toques do alcance de suas mãos. E ele insistia em ficar calado. Ela não liga a televisão, talvez não gostasse dos programas da tarde de sábado... filmes, calouros, auditórios... Pudera, ela era a única pessoa da platéia que assistia o sono profundo daquele telefone.

O aparelho, num cinza dos cigarros que ela não aparentava fumar. Se fumasse, talvez precisasse sair dali para procurar um cinzeiro, para tomar um café, para pegar um isqueiro e até para comprar cigarros. Aparentemente, ela não fumava. Se bem que seria, no mínimo, interessante àquela mulher vestida de verde deitada em sua cama cheia de listras com olhos de dirigível e cabelos de uma seda javanesa contida na distância do telefone fumar como fumam os presidiários. Quem sabe o cigarro a levasse para um banho de sol. Estava precisando sair daquele calabouço que se colocara.

Os olhos eram as únicas testemunhas de que esperava alguém. Não tinha agenda aberta em cima da cama, nenhum bilhete, nenhuma tranqüilidade, nenhuma certeza. A cama tinha o seu corpo e o telefone, nada mais. Era um imenso espaço, ainda mais quando ela se encolhia toda. Abraçava as pernas, colocava a cabeça no meio delas, como que querendo sumir em si mesma. Como se querendo virar do avesso e tentar algo diferente. Não folheava revistas, não tinha concentração para se dedicar nem mesmo ao caderno mais leve do jornal de domingo. Também não ligava o rádio. Adorava música, principalmente aquelas vindas do litoral nordestino. Passava lá as três ou quatro últimas férias. Mas a música, nesse momento, poderia abafar o toque telefônico.

O sol castigava. O silêncio castigava. A espera castigava. Ela, naquela cama, parecia deitada em uma esteira, sem areia, sem mar, sem água de coco, mas com um sol que infiltrava pelas paredes e gotejava em suor sobre seu corpo. Suor de nervos. Não tinha nada nas mãos. Faltava-lhe um terço para rezar ou contar suas contas. Faltavam-lhe agulhas de tricôs para cercar espaços vazios. Faltava-lhe cocaína, ao menos para fazer com que as duas ou três horas mais próximas passassem despercebidas. Faltava tanto para aquela mulher de traços escalenos.

Não tinha sono. Não tinha fome. Não tinha ânimo. Tinha pressa. O sol vermelho, quase um inferno no céu. No céu aberto. A blusa verde banhada de suor. As barras, ou melhor, as listras do lençol iam ficando tortas. Pelo calor ou pela espécie de ninho que aquela fêmea fazia. Podia buscar prazer na piscina redonda do condomínio, no shopping há três quadras dali ou no seu próprio corpo, mas parecia condenada. Entregue. Sem forças. Como um alarme, um sino, um galo jovem que desvirgina sua garganta inundado de hormônios e orgulho, o telefone rompe as amarras do silêncio.

Ela pula, tateia o telefone, mas espera. Um toque. Dois toques. Três toques. Quatro toques. Parecia não querer atender. Aliás, segurava-se para não atender. Não queria parecer que esperava. Podia deixar desligar e só atender quando voltasse a ligar, mas não. Seria tortura demais. Seria arriscado demais. Seria besteira demais. Não tinha identificador de chamadas, mas ela sabia quem era. No início do quinto toque, ela tira o telefone do gancho. Sem escutar nenhuma palavra do outro lado da linha, sem dizer alô, oi, boa-tarde, pronto, ela desfia 30 segundos de indignações, raivas, mágoas, descontentamentos. Todo aquele silêncio guardado ela despeja em míseros 30 segundos. Em seguida, bate o telefone no gancho com toda a força que acumulara naquele casulo de esperas. Bate o telefone e sorri um sorriso enfático. Não um sorriso de alegria, mas um sorriso de satisfação. Depois de toda aquela saída de gritos, nervos e calor, ela, sem nenhuma dose de romantismo, desmaia na cama. Deita de bruços para não correr o risco de olhar para o telefone que ficou aos seus pés, propositalmente, fora do gancho.


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